«Nós também estivemos lá… por pouco» por Bárbara Carvalho e Laura Almodovar

Nacional

Celebrar Abril e Maio não pode ser só estética. É sempre um momento de resistência necessário. Celebrando-se aquilo que foi, reivindica-se o que já não é. Celebramos a luta antifascista e as conquistas arrecadadas. Afirmamos a urgência dos direitos que nos são retirados, que a nossa geração já não conheceu, mas que também não esqueceu. A celebração de Abril e Maio não se ancora numa evocação identitária oca e simplista, mas sim num pulsar de exigências que nos é quotidiano.

A produção cultural, no contexto actual, já é em sim um acto de resistência, sobretudo quando politicamente posicionada, sobretudo em Abril e Maio. Elas também estiveram lá é mais do que a reivindicação da memória histórica e muito mais que uma celebração. A verbalização não sai fácil, a selecta audiência e a imediatez passional da época dificultam a tarefa, mas exigem-se umas linhas sobre as que resistiram, as que lutaram e as que as transformaram – a elas e às suas histórias – em símbolos de luta. Uma peça que, por se posicionar política e ideologicamente sem descurar o sentido estético, tem (ou teria) a capacidade de impactar públicos vastos. Uma peça que conjugando cinema, música, literatura, fotografia e teatro mostra que as opções estéticas são em si veículos de mensagens. Neste caso, numa só peça, a confluência de artes para uma construção colectiva. Uma peça de teatro político que fomenta o sentido crítico e levanta questões sem apontar, à partida, a direcção certa para o processo de reflexão de cada espectador.

Elas. Elas, as mulheres da resistência antifascista, de Abril e Maio, e do PREC. Uma produção que escapa a um cânone de arte militante assente no evento, Elas viajaram e fizeram-nos viajar entre os três momentos que, em comum, têm a resistência e a luta. A resistência e a luta delas que não foi – nem é – a mesma que a deles. Mas, mais do que dar visibilidade às narrativas da Teresa, da Júlia ou da Eugénia, por oposição à resistência e à luta do Domingos, do Vítor ou do Henrique, mostraram-nos como o processo revolucionário foi construído em conjunto, como formas de opressão desaguaram em formas de transformação de classe, de género, de sociedade e de cultura. Elas, que continuam de fora das narrativas oficiais. Elas, que não desistiram das suas reivindicações em Abril de 1974 e, menos ainda, em Novembro de 1975.

Com elas participamos num jogo de espelhos entre ausências e presenças, num confronto entre os actores estabelecidos da nossa memória colectiva e as figuras (femininas) que passaram os últimos 40 anos a julgar que não tinham nada para contar. Trouxeram relatos que iluminam as particularidades de viver mulher durante o fascismo, sobretudo na sombra do quotidiano, da intimidade. A brutalidade de viver mulher sob a asa de um homem – primeiro o pai, depois o marido. Violações conjugais ou abortos clandestinos e solitários – porque o pão não chegava para mais um, os contraceptivos não existiam e o maridinho tinha vontades. A tortura pela PIDE que era tudo o que foi para o Zé, o Pedro e o António, mas para a Georgete, a Conceição e a Aurora revestia-se ainda do machismo sistémico, com humilhação sexual, exposição de nudez e chantagem através dos filhos. Nesta peça, ao iluminar-se o que era viver mulher não se apaga que nem todas as mulheres estavam em pé de igualdade. As mulheres trabalhadoras do Couço não se confrontavam com as mesmas dificuldades da mulher que vivia na Avenida e que escondia as suas leituras proibidas. A livreira, filha de trabalhadores, que estudava na escola comercial e não tinha dinheiro para comprar um dicionário não é a Teresa que foi expulsa do liceu por distribuir propaganda. Mas até sobre isto a peça nos põe a reflectir, sobre a importância da opção de classe.

Neste jogo do ausente e presente, surgem paralelismos com a resistência espanhola, com o que foi lá e cá, numa península que aguentou as mais longas ditaduras europeias. Está ausente da peça, talvez porque só agora começa a surgir na discussão da memória colectiva, relatos do que se passava nas colónias. Relatos das Elas (e eles) que no hemisfério contrário se debatiam contra uma guerra colonial, contra a morte quase certa, contra um fascismo que as considerava menos que humanas.

Ainda há muito caminho a percorrer, mas para isso elas (nós) estão a fazer a sua parte.

Como é que as mulheres desta peça também estiveram lá? Talvez ainda estejam a tentar descobrir. O Teatro do Vestido foi uma das companhias que não recebeu financiamento da DGArtes. Sem financiamento desde Janeiro, as actrizes asseguram os compromissos contratuais já estabelecidos. Até quando é que, nestas condições, elas vão continuar a estar lá?

Como é que nós também estivemos lá? Ainda nem nós sabemos bem. A EGEAC anunciou os poucos dias que a peça estaria em cena (já começa a ser hábito uma programação que serve mais para marcar calendário do que promover uma efectiva política cultural). Condições: 20 bilhetes diários, 2 bilhetes por pessoa levantados no próprio dia a partir das 13h. Local: Cinema São Jorge. Como: Chegada a meio da manhã para marcar lugar. Resultado: 18 bilhetes reservados pela EGEAC, 2 disponíveis. Um cenário que se repetiu como tema e variações nos restantes dias. Fosse isto um momento isolado e estaria a cidade de Lisboa bem servida em matéria de política cultural. O desinvestimento é um dos sintomas da incompreensão do papel da cultura numa sociedade (ou então por compreenderem bem demais). A política de compadrio e de desrespeito pelo público é outro. A cidade de Lisboa e o país precisam de uma política cultural séria, que não se guie pelo monopólio da EGEAC e dos interesses privados que com ela se movem.

O país precisa que elas continuem lá e que ela – a cultura – esteja sempre lá.

*Autor Convidado
Bárbara Carvalho e Laura Almodovar

1 Comment

  • Jose

    23 Maio, 2018 às

    Apagando…

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