Notas sobre a democracia cultural

Nacional

A criação e fruição culturais são direitos constitucionais em Portugal. Muito se tem dito sobre o financiamento do apoio às artes e à produção cinematográfica. Desde 2009 que não se realizam os concursos de apoio à produção literária, por isso é como se não existisse criação e fruição literária neste “país de poetas e escritores”.

O actual momento é um mau ponto de partida para fazer a discussão sobre o financiamento público à concretização destes direitos, na medida em que na ausência de um orçamento é impossível financiar o que quer que seja. Contudo, a política do tipo “shock and awe” do Governo para a Cultura, abriu feridas que estavam latentes na sociedade e no tecido artístico e cultural que, talvez por estarem agora expostas, motivam um debate que é, desde há décadas, urgente.

O facto de só agora os concursos da DGArtes e do ICA terem colapsado e de só em 2009 terem suprimido os concursos de apoio à produção literária, não significa que todas as políticas e opções que foram tomadas e praticadas anteriormente estivessem em linha com a plena concretização dos direitos dos portugueses no que toca ao acesso à produção e à fruição cultural. É verdade que PS acabou com o apoio à literatura, que PS também cortou os apoios plurianuais e que PSD e CDS aproveitaram a boleia, assinaram o pacto com a troica, e zás, vá de acabar com isso de financiar a liberdade artística. A Constituição, filha de Abril, feita pelas mãos de deputados que estavam nas mãos do povo, ainda diz que o Estado desenvolve uma política cultural em conjunto com o movimento associativo, as autarquias e as escolas e ainda diz que cabe ao Estado assegurar a concretização dos direitos de todos os portugueses à cultura e à arte. Esse mesmo texto também que cabe ao Estado a preservação e valorização do património cultural do país e também nessa matéria o Governo mostra que não é selectivo com as partes da Constituição que prefere não cumprir.

Ora, findo o apoio à literatura, reduzido em 75% o apoio às artes (teatro, artes plásticas e design, dança, música, e expressões interdisciplinares) e feita a vontade das operadoras de televisão por subscrição (ZON, Vodafone, MEO e outras que tais) ao reduzir a sua participação no financiamento à produção cinematográfica e ao aumentar a sua capacidade de determinar a forma e o conteúdo das produções futuras, resta-nos não apenas perguntar como chegámos aqui, o que não deixa de ser importante questão para muitos que ainda não perceberam, mas também perguntar e perguntarmo-nos qual o caminho para a concretização plena dos direitos culturais e da democracia cultural que Abril ousou projectar. Este momento não é o primeiro em que tais questões, a nós comunistas, surgem. Temos sobre essas questões património de reflexão e de resposta alternativa. Mas o momento abre-nos as portas a falar com todos os que sentem hoje o silenciamento, a censura política travestida de financeira, sobre a liberdade de criação.

E não estava tudo bem antes dos cortes. Não estava tudo bem antes da miserável lei do cinema de PSD e CDS (que é na prática igual à proposta pelo PS e talvez tenha até sido escrita pelo mesmo escritório de advogados), tal como não estava tudo bem quando o apoio às artes contava com 22 milhões de euros (que compara com os 5 actuais) e tal como não estava tudo bem quando os museus não eram obrigados a despedir pessoas mas também não tinham meios para aquisições, incorporações e muitas vezes mesmo, para a manutenção e salvaguarda do seu património. Também não estava tudo bem mesmo antes de o PS ter extinto o IPA – Instituto Português de Arqueologia e antes de o Governo PSD/CDS ter recriado o monstro que é a DGPC, concentrando missões, desmantelando capacidades.

A concretização dos direitos constitucionais à salvaguarda, conhecimento e valorização do património é o mais simples de resolver: a dotação da administração pública e do Estado de meios e trabalhadores, operários, técnicos, técnicos superiores e investigadores, o aumento da presença do Estado no território e o reforço do financiamento das instituições museológicas, laboratoriais e universitárias são as chaves para o problema.

Já no apoio à criação, a questão é mais funda. Ora, o Estado não é programador e ainda bem. Ou melhor, o Estado é programador, mas apenas complementarmente e como escola técnica e artística. Ou seja, no aprofundamento da democracia, não cabe ao Estado promover a programação cultural e muito menos ser autor de criação. Essa dimensão, de que o Estado português ainda não abdicou – e parece-me não abdicará, ainda que por motivos alheios a esta reflexão -é complementar na medida em que não é o garante propriamente dito da democratização da cultura e da arte, mas não deixa de ser um elemento fundamental para essa democratização. É fundamental a presença e o funcionamento de companhias artísticas de propriedade e gestão pública, estatal, pois são escolas estéticas, artísticas, profissionais até, e simultaneamente promotores de oferta cultural que de outra forma poderia não incorporar o tecido nacional e, muito menos, incorporar o património popular. As companhias públicas, de música, orquestra, ópera, bailado, teatro são portanto condição indispensável para o cumprimento dos desígnios constitucionais, mas não suficiente. A manutenção de companhias públicas num cenário de asfixia ou supressão da liberdade artística e criativa conduz à cultura de regime, à ditadura estética e à arte como propaganda da classe dominante, plenamente assumida. Todavia, a destruição dessas companhias nacionais, acarretaria custos irreparáveis para a liberdade de criação.

A existência de concursos de apoio às artes e à produção cinematográfica é também, em si mesma, condição incontornável para a materialização dos direitos, mas não suficiente. A realização dos concursos, a disponibilização de uma verba para estas tarefas, não garantem justeza, nem acerto. Ou seja, como a realidade actual nos mostra, existe um patamar orçamental abaixo do qual é impossível proceder a uma distribuição justa. A questão já não se coloca na aplicação de critério, coloca-se na impossibilidade de aplicar critérios quando o financiamento se cifra abaixo desse patamar. Ou seja, para que a realização de concursos se traduza efectivamente no cumprimento do papel do Estado perante a Cultura, essa realização tem de ser necessariamente acompanhada de um programa de financiamento que permita justeza e transparência na avaliação dos projectos e simultaneamente a sua concretização. Mas são necessárias outras condições: a democraticidade do processo, a capacidade de escrutínio, o envolvimento das estruturas na definição dos programas, e a difusão dos recursos sem acantonar escolas estéticas, escolas técnicas ou disciplinas.

Para que se cumpra a Constituição, para que se alcance a democracia cultural que o PCP inclui nos seus objectivos desde a aprovação do “rumo à vitória” em 1960 pelo seu comité central, é estritamente necessário que o concurso não redunde na atribuição de 20 milhões de euros (agora muito menos) a 40 ou 50 estruturas de criação artística. E ainda mais necessário é que o concurso não redunde na atribuição de largos milhares euros a um conjunto muito reduzido de estruturas – que captam sistematicamente os quadrienais e bienais maiores – enquanto a maior parte das estruturas candidatas se fica pelo indeferimento do apoio ou pela captação de pequenos apoios pontuais e anuais. Essa política, que concentra nas grandes companhias a grande parte do financiamento total  é a que antecede a crise do financiamento estatal às artes em Portugal e não pode ser entendida como a solução alternativa para a situação em que nos encontramos. Sem qualquer espécie de desmerecimento para as grandes companhias, cujos nomes me absterei de referir, e sem qualquer espécie de engrandecimento imerecido das pequenas, cujos nomes igualmente oculto, é importante que o Estado seja completamente alheio a considerações estéticas e que simultaneamente disponha dos meios que lhe permitam o apoio sem ter de aplicar uma linha de corte injusta.

Só uma política de aumento substantivo do orçamento do estado para a cultura e para o apoio às artes; a planificação de uma estratégia de democratização da cultura que envolva as estruturas de criação artística na definição dos critérios, dos objectivos, dos valores e dos programas; e que distinga as artes experimentais e de investigação da produção de repertório, permitindo o desenvolvimento de ambos os ramos da criação poderá criar a ruptura com as práticas que até aqui, tendo possibilitado de facto o aprofundamento do processo de democratização cultural, nunca foram suficientemente longe para se poder afirmar que o processo criativo se tornou plenamente democrático e que a fruição se tornou plenamente colectiva.

A criação e a fruição artística, sendo que podem aplicar-se praticamente os mesmos princípios à produção cinematográfica, serão plenamente democratizadas no momento, e não antes, em que os portugueses, todos e em pé de igualdade possam trabalhar nas expressões que pretendam, participar na definição da política cultural, concretizar a criação individual e colectiva, popular, clássica, ou experimental, bem como a todos seja assegurada a livre fruição e o direito a produzir arte, nos papéis criativos ou técnicos, sem exploração do seu trabalho e apropriação da riqueza por outrém.