O «Barómetro» Sócrates

Nacional

«Agora é que se vai ver se esta Justiça é uma Justiça a sério». «Agora é que a Justiça vai mostrar se é mesmo democrática e independente». «Ou ele é culpado e condenado, ou os tribunais não valem nada». «Se há este circo todo e depois nada se prova, a nossa Justiça perderá todo o crédito». Variáveis destas frases, declarações mais ou menos semelhantes, textos mais ou menos explícitos têm repetido esta ideia central: a detenção de Sócrates não é somente um caso de uma alta figura na Justiça portuguesa; muito mais que isso, configura-se como um autêntico «barómetro» que vai «medir», «avaliar», «qualificar» a Justiça que vigora em Portugal. Há quem vá um pouco mais longe e afirme, com todas as letras, que a sentença vai «pôr à prova» o próprio «regime democrático», «o Estado», «as Instituições», «a democracia». Descontando o que é apenas produto do delírio quase religioso da velha entourage socrática, acontecendo isto num país que é governado há três anos por um governo que tem como prática ‘normal’ cometer sucessivos, reiterados e assumidos atentados à Constituição da República, que é só a Lei Fundamental, só por brincadeira é que se pode achar que é este «caso Sócrates» que vai «medir» a «qualidade» da nossa Justiça, das instituições ou da nossa democracia. Ou é fanatismo ou é humor. Como fanatismo é deplorável e doentio; como humor é um autêntico fracasso.

Tem sido muito repetido esta semana que “à justiça o que é da justiça, e à política o que é da política”. É como quando o governo reage a chumbos do Constitucional dizendo que “vai acatar a decisão”. Ora, como se pudesse não o fazer. Como se assim pudesse não ser. Como se fosse possível num Estado de Direito e no pleno de respeito obrigatório pela lei fundamental, haver interferência política na justiça, ou vice-versa. A questão que porém se coloca é esta: porque será que altos responsáveis de PS, PSD e CDS repetem à exaustão que “é preciso garantir a separação de poderes”? Porque sentem eles a necessidade de reafirmar a toda a hora e a todo o momento que essa separação deve ser salvaguardada? Não deveria ser um dado adquirido? Que sabem eles que nós não sabemos? Não têm sido eles – e só eles – os responsáveis políticos pelas leis aprovadas no parlamento e que regem as instituições democráticas? Não têm sido eles – e só eles – os guardiões da democracia? Quem é que tem legislado, decidido, organizado as funções do Estado? Enquanto alguns veem no “à justiça o que é da justiça, e à política o que é da política” a mera circunstância ou apenas a constatação do óbvio, talvez não fosse pior que houvesse alguma cautela e uma atenção redobrada. De todos.

Dê lá por onde der este ou aquele caso em particular, o problema não é e nunca será só «aquele ministro», «aquele ex-ministro» ou «aquele banqueiro»

A detenção particular de José Sócrates não é algo que deva causar especial satisfação a quem quer que seja. Nem por sombras. A detenção para interrogatório, ainda que diferente da convocação para um normal inquérito em tribunal, mesmo assim vale o que vale. Mas ter isso presente não significa não ter convicção, ou não fazer um juízo prévio, ainda que elementar, face às notícias e face aos visados. Negá-lo ou condenar quem o faz é pura hipocrisia. Contudo, há que fazer um esforço no sentido de olhar a montante, ao patamar da origem do problema, e de um modo geral não apenas por convicção mas também por constatação, que é a corrupção e a sucessão de casos de crimes de natureza essencialmente económica e financeira que desde o agudizar da crise vieram à tona no nosso país. Há que perceber o que é que verdadeiramente liga, potencia, permite os vários casos de corrupção – uns confirmados, outros por confirmar – e o que contribui para a degradação da política e da democracia. Dê lá por onde der este ou aquele caso em particular, o problema não é e nunca será só «aquele ministro», «aquele ex-ministro» ou «aquele banqueiro». São anos, décadas, de maus governos e maus governantes. São anos de leis ideologicamente concebidas, de políticas a preceito de uma determinada lógica de promiscuidade e favorecimento entre poder político e poder financeiro. São legislaturas inteiras pautadas pela submissão das regras da democracia às regras da finança. É todo um sistema poderoso e corporativista, manhoso, oculto, esperto, promíscuo, que perpassa, resiste, conspira e patrocina a alternância entre PS, PSD e CDS, não lhe importando, não lhe fazendo mossa, que o líder se chame Sócrates, Passos Coelho, António Costa ou Paulo Portas. E enquanto não se cortar o mal pela raiz, enquanto o país não perceber que tem de correr de uma vez por todas com os partidos que nos têm governado, o problema vai continuar lá, com repercussões no presente e no futuro de todos os portugueses.