O Chão Salgado de Marcelo e o Azar dos Távoras dos Portugueses

Nacional

Ontem à noite, Marcelo saiu do Palácio para um passeio a pé por Belém. A semana tinha começado mal – com notícias que davam conta de suspeitas graves de pedidos de cunha –, a que acresceu uma inenarrável conversa com um diplomata palestiniano, da qual saiu pior que chamuscado. Mas agora, ao que tudo indicava, a semana terminava da melhor forma, até pela oportunidade de secundar as situações anteriores. Costa e o governo PS caíam com estrondo, ainda por cima num caso que envolvia o ministro Galamba, que tinha sido «demitido» por Marcelo mas mantido por Costa.

Sabendo que assim aconteceria, decidiu o presidente da república fazer então essa caminhada nocturna, sendo acompanhado durante largos minutos pelas câmaras de várias televisões, que transmitiram o “acontecimento” em directo. Passeou-se sua excelência em marcha de triunfo e de gáudio, num lento «eu ganhei» de carácter épico, por entre risos e conversas com a militar que o acompanhara. A determinada altura, como apoteose do simbolismo da coisa, meteu-se Marcelo por um beco sem saída, o Beco do Chão Salgado, onde, em 1759, foram justiçados os Távoras, acusados de traição e de tentativa de homicídio do Rei D. José. Como é sabido, nesse paradigmático local de «justiça» contra a «alta traição», depois da decapitação dos acusados, ordenou-se o salgamento simbólico do chão, para que nada mais ali florescesse, como repúdio máximo da impureza diabólica do sangue que ali fora derramado. E foi assim, invocando o mais célebre episódio do despotismo pombalino, que Marcelo Rebelo de Sousa se quis referir, ontem, em directo, à demissão do primeiro-ministro António Costa.

A maneira de Marcelo estar na política, aquela que lhe dá mais prazer, mais gozo, mais satisfação pessoal, é precisamente esta. Sair de quaisquer confrontos por cima, isolado e triunfante, vencedor, saciar a sede imperiosa e doentia da boa imagem, da popularidade como cerne de existência, procurando espezinhar adversários políticos com algum espectro de humilhação, se possível. Fez por isso um contundente número, uma teatralização vistosa, que permitisse dar facadas sonsas – e insultuosas –, sem possibilidade de resposta, a um «inimigo» já tombado, morto politicamente. Deu-lhe aquele laivo intelectual para evitar a banalidade, para que não fosse propriamente um gesto ordinário, para escapar a qualquer repercussão negativa nas massas, de cuja bajulação precisa para sobreviver em todos os sentidos.

Este é o «bom» velho Marcelo, a sua verdadeira face, a sua indisfarçável natureza. Não sendo único – o próprio Costa também adora jogar nestes tabuleiros, sendo natural que de quando em vez prove do mesmo veneno – é, porém, dos mais abrasivos do sistema que nos rege. Na semana em que se viu acossado por episódios desprestigiantes e naquilo que parece ser o início do período decadente até à sua saída de cena, a crise governamental apareceu como oxigénio na altura certa.

Fica porém esta nota: não é com os problema do SNS em pré-ruptura, com a crise da habitação, com o sufoco económico e financeiro das famílias portuguesas e nem sequer com os fundos do PRR que Marcelo está propriamente preocupado. Não é na Constituição e no cumprimento dos seus pressupostos fundamentais que está a atenção de Rebelo de Sousa. O Presidente da República coloca em cada gesto, cada acção, cada teatro, cada conversa, cada «caso», a sua incomensurável sede de criar boa imagem, de ter protagonismo, de calcar adversários, e é isso que está primeiro do que qualquer outra coisa.

Estes e outros episódios até podem ser sempre motivo de notícia, mas, tendo em conta o protagonista, nunca terão nada de verdadeiramente surpreendente. Para os anais da história, Marcelo ficará com este seu cínico passeio da glória; mas é também certo que, a manterem-se estes protagonistas no poder, aos portugueses só continuará a caber o azar dos Távoras.

2 Comments

  • Maria Graça Fonseca

    9 Novembro, 2023 às

    Excelente e pertinente crónica.
    Parabéns!

  • Cristiano Ribeiro

    8 Novembro, 2023 às

    brilhante análise psicológica e política

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