A torneira, o interruptor e o azul do mar

Internacional / Nacional

Fotografia de Mohammed Zaanoun, fotojornalista palestiniano.

Já lá estava gente, já lá viviam pessoas. É isto que os engravatados do telejornal nunca dizem, tentando convencer o espectador de que o início do massacre em curso data do passado 7 de Outubro. Já lá existiam famílias, sonhos e vontades. É o que nunca ouvimos da boca dos finos fantoches do imperialismo, nos estúdios de Queluz de Baixo ou nas costas quentes de Tel Aviv. Já lá conviviam templos, culturas e olivais. Já lá nascia vida. Já lá se moía, há muito, o grão de bico, com um dente de alho, tahini e sumo de limão. Já lá se havia edificado um povo inteiro que, hoje, resiste à barbárie sionista. Os sonhos foram ceifados, os olivais, abatidos, e a Terra, que há muito não é santa, ocupada ilegalmente por essa vesana e assassina ideia de Israel, Estado genocida erguido sobre enxurradas de sangue palestiniano. Mas, à pretensa agência imobiliária divina, nada disto interessa: um livro místico com 2500 anos assegura, num diálogo entre Deus e Abraão, que a terra prometida não é para qualquer um.

Vendido como a promessa de um Estado judaico e para os judeus, perseguidos, espezinhados e mortos durante séculos – ninguém ousa negá-lo – Israel cedo se tornou num projecto de segregação, limpeza étnica e genocídio. Na semana em que se cumprem dolorosos 106 anos da assinatura da Declaração Balfour, fruto da soberba do imperialismo britânico, é urgente sublinhar o que não é televisionado. Lord Arthur Balfour, secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, escrevera a Lionel Walter Rothschild, 2º Barão Rothschild, prometendo, à Federação Sionista, a construção de um “lar nacional para o povo judaico”, na Palestina, que, à data, pertencia ao Império Otomano. Comecemos, então, pelo princípio, denunciando a cedência, pelo Reino Unido, de uma terra que não lhe pertencia. E que – nunca é demais dizê-lo – já era habitada por populações autóctones, que nunca foram ouvidas ou consultadas, aquando do ímpeto que esteve na base da sua expulsão, da desumana Nakba e desta longa carnificina com o selo de aprovação do ocidente.

Facilmente se entenderá, mundo fora, de onde vem o apelo de um Estado judaico no seguimento do Holocausto, porém, quem ainda não carrega uma pedra no lugar do coração não entende, nem aceita, que um povo ouse salvaguardar os seus interesses dizimando e expulsando outro povo; que seja sequer remotamente legítimo curar-se de um genocídio alavancando outro; que, no fundo, ter sido vítima de uma catástrofe humanitária indizível seja desculpa para desencadear nova catástrofe humanitária indizível. Posto isto, é, no mínimo, ingénuo simplificar assim a história, já que o projecto de criação do Estado de Israel surge 50 anos antes do Holocausto, tragédia que é, hoje, desbragadamente instrumentalizada, para que Israel possa levar avante toda e qualquer chacina, sem que comprometido seja o seu estatuto de vítima. Ou seja, estamos perante algo muito mais complexo do que a protecção dos judeus. O sionismo não é senão um pretexto criminoso e profundamente racista para ocupar uma terra que já tinha gente, com a bênção de uma lenda da Idade do Bronze, segundo a qual os judeus são o povo escolhido por um Deus que, até ver, ainda não se pronunciou acerca dos acontecimentos do último século. A carta branca para o apartheid e a permissão de um massacre quase octogenário realmente não constam na lenda, mas são ossos do ofício aos olhos desse fanatismo religioso sem lei, e danos colaterais inevitáveis rumo à erradicação do terrorismo, para este nosso ocidente podre que ensaia uma cegueira cúmplice.

Gideon Levy, jornalista israelita, confessou, numa conferência, que conhecia os contornos de muitas ocupações feitas ao longo da História, mas desconhecia a ocorrência de outra ocupação em que o ocupante se fizesse passar por vítima. Melhor dizendo, que não só se faz passar por vítima, como crê ser a única vítima. Recorda, de seguida, Golda Meir, primeira-ministra de Israel durante a Guerra do Yom Kippur, quando esta declarou que nunca perdoaria os árabes por forçarem os sionistas a matar os seus filhos. A vitimização é, nos dias que correm, uma arma poderosíssima que Israel ostenta e manuseia, com o propósito de perverter a opinião pública. É o eterno trunfo sionista.

Falemos, então, de terrorismo.

Israel, ou “a única democracia do Médio Oriente”, perífrase que seria cómica acaso não fosse abjecta, é, desde a sua fundação, em 1948, uma fonte infinita de conflitos em toda a região, tendo invadido e/ou bombardeado, diversas vezes, todos os seus vizinhos, não representassem as duas faixas azuis da sua bandeira os rios Nilo e Eufrates, como quem se julga dono de tudo aquilo que delimitam. Democraticamente, claro. Israel, ou “o melhor investimento de 3 biliões de dólares feito pelos Estados Unidos” – esta já soa melhor – é a imposição, ao povo palestiniano, de um apartheid facínora que começou por terraplanar aldeias, infestar o território de checkpoints, impedir a circulação deste povo em centenas de ruas que são suas, e que segue controlando o número imoral de calorias e mililitros de água que cada palestiniano, em Gaza, consome por dia, mais as horas de electricidade a que têm direito, quando têm. Em A Presença da Ausência, Mahmoud Darwich, o rosto duma pátria, reflecte acerca da ocupação da Palestina com uma delicadeza que é só sua, e desabafa: Israel “controla a torneira, o interruptor e o azul do mar”. Israel apoderou-se ilegalmente, não só da terra prometida, mas de todos os seus recursos.

Recuemos, brevemente, aos primórdios deste Estado que envergonha muitos milhares de judeus ao redor do Globo, lembrando a cidade de Bayt Jibrin, anexada, por Israel, a 27 de Outubro de 1948, no seguimento da Operação Yoav, não sem antes aumentar, de 100 000 para 230 000, os refugiados na Faixa de Gaza, ou a de Al-Dawayima, que viu os crânios das suas crianças esmagados com paus e as suas mulheres violadas, pelas tropas israelitas, entre os destroços. Têm chamado, a Ashkelon, uma cidade mártir, porque lá foram mortas, pelo Hamas, 22 pessoas. Mas acaso referiram que a cidade israelita de Ashkelon foi construída sobre a palestiniana cidade de al-Majdal, ou quantos nativos terão as tropas israelitas matado aquando da anexação? Quantos expulsou, violentamente, até 1950? Em nome de que profecia é isto defensável? Avancemos, agora, cientes de que não há eufemismos possíveis; cientes de que o império dos eufemismos, que galga, truculento, sempre que as vítimas não são da cor da cal, tem de cair, de uma vez. Não estamos diante de nenhum conflito, mas de um colonizador sem escrúpulos que estala os dedos e corta, ao colonizado, a água, a electricidade e o acesso àquele mar de um azul já esbatido, que cantava epopeias bem antes de 1948; que barra a entrada de alimento, água potável, combustível, medicamentos e qualquer tipo de ajuda humanitária que vise amenizar o terror. Não, isto não começou este mês, e a descolonização é, invariavelmente, um processo violento.

Para a CNN Portugal, defender o direito do povo palestiniano à resistência é estar do lado do Hamas, e participar numa manifestação contra o genocídio desse povo, denunciando os crimes de Israel, também o é. Se era inconcebível o emprego do termo operação militar especial, aplicado à guerra na Ucrânia, valendo, a qualquer um, o rótulo de fervoroso putinista, hoje, os avanços israelitas designam-se por incursões. Os russos invadem sem dó nem piedade, os israelitas fazem singelas incursões, investidas e operações terrestres. Há poucos dias, um grupo de judeus anti-sionistas protestava, no bairro Mea Shearim, em Jerusalém, contra o genocídio, e cada um deles foi violentamente agredido pelas forças de segurança. O pivot José Alberto Carvalho, no telejornal que se seguiu, disse que “a polícia israelita interpelou um grupo de judeus ultra-ortodoxos que manifestavam apoio aos massacres do Hamas”. E, realmente, foram interpelados na cara, foram interpelados contra um portão de ferro, foram interpelados para o meio do chão. Paulo Baldaia afirmou, ontem, que a excessiva mortandade, em Gaza, se trata de um descuido de Israel. Ups, caiu uma tonelada de explosivos sobre civis. Ups, lá se foi o depósito de água. Ups, que afinal era uma escola. Como é sofisticada a arte do branqueamento. Os eufemismos destes e doutros são atestados de cumplicidade, quando nem a hipérbole parece fazer jus à hecatombe.

Embora muito se fale do Hamas, muito fica de fora. Como se a exposição, sem reservas, de toda a verdade, fosse sinónimo de defender o que quer que seja.

Porque lhes convém, Israel e o ocidente referem-se ao Hamas como um grupo terrorista. Era mais complicado explicar que se trata de um movimento político pela independência da Palestina, que alberga, por exemplo, organizações estudantis e de mulheres. Seria possível expor a verdade e condenar, simultaneamente, o Hamas, quer pelas acções armadas, quer pela ideologia que assume, contudo, a verdade tem cores a mais para a versão a preto e branco que as televisões, capangas do capital, escarram sobre a audiência. É um movimento fundamentalista islâmico com um braço armado e tudo o que isso implica? É, sim. Será essa a definição de grupo terrorista? Não. A estratégia não é nova e consiste numa simplificação da realidade até ao tutano, para validar a ofensiva contra o inimigo. Neste caso, usa-se o Hamas como bode expiatório, pois que o alvo, o inimigo, que Israel quer aniquilar é todo o povo palestiniano – o que já lá estava. E, ao reduzir o Hamas a um grupo terrorista, corta-se pela raíz qualquer sentimento de empatia, descarta-se a possibilidade de negociação e, sobretudo, dispensa-se o debate. Este Princípio da Simplificação é o primeiro, numa lista de 11 mandamentos, apresentados pelo ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels. Há ainda, entre outros, o da Transposição, que atribui todos os males sociais ao inimigo em causa; o da Vulgarização, que pinta como gratuitas, ordinárias e sem justificação todas as acções do inimigo; o da Orquestração, que se distingue pela difusão de rumores até estes ecoarem em toda a imprensa, ou o do Silêncio, que é, por ventura, mais útil do que nunca, já que propõe esconder toda a informação que não seja conveniente. Conseguiremos, sem dificuldade, enumerar diversos exemplos do modus operandi sionista que façam eco destes ditames. Israel, onde habita uma maioria judaica, sobreviventes do Holocausto incluídos, adopta, meticulosamente, princípios que estiveram por trás do genocídio de 6 milhões de judeus. É irónico? Lá isso é.

Tampouco se discute a origem do Hamas, pois tal não seria benéfico para a coesão, que já é escassa, da narrativa fantasiosa que nos é servida pela comunicação social. Não só o Hamas prosperou às custas do patrocínio calculista de Israel, com o objectivo de enfraquecer organizações progressistas como a OLP, a Fatah, a FDLP e a FPLP, como até já foi dito, por um ex-director dos seus serviços secretos, que o facto de o Hamas controlar a Faixa de Gaza dá muitíssimo jeito a Israel. É esse mesmo facto que legitima, segundo a delirante lógica sionista, que todo aquele território e seus habitantes sejam tratados como terroristas da pior apanha. E, como toda a gente sabe, se são terroristas, não são gente. Acrescente-se, portanto, que, para levar a cabo este projecto cuja natureza já caracterizámos, Israel, juntamente com EUA e UE, encabeça uma agenda de desumanização do mundo árabe, em geral, e do povo palestiniano, em particular, que nos entra pela casa adentro em horário nobre, através de uma cobertura noticiosa altamente parcial e dos comentários daninhos que se seguem. Na linguagem, na selecção das imagens e na distribuição dos tempos de antena, a desumanização predomina, porque, quando a barbárie vai ao encontro dos interesses ocidentais, é uma barbárie boa. Yair Lapid, ex-primeiro ministro de Israel, foi claro: “se os média forem objectivos e mostrarem ambos os lados, servem o Hamas”.

Para que esqueçamos a diferença entre genocídio e auto-defesa e aprendamos a tolerar os danos colaterais da barbárie boa, dizem-nos que os israelitas são mortos, mas que os palestinianos apenas morrem. Repetem que Israel meramente se defende, enquanto o Hamas espalha o terror; que tudo se deve ao recente ataque terrorista, sangrento, desumano, indescritível, criminoso e todos os demais adjectivos depreciativos de serviço, perpetrado pelo braço armado do Hamas, no qual foram mortos centenas de colonos israelitas. Assim, até parece que as hostilidades começaram do lado da Palestina, não há 75 anos, mas há semanas, e que Israel nada fez para despoletar tal demonstração de violência. Como se Israel não sujeitasse, continuadamente, um povo inteiro às piores atrocidades. Depois, enchem-se noticiários conspirando acerca de 40 bebés israelitas supostamente degolados, os quais, entretanto, percebemos que não existem, para evitar enchê-los com os 10 000 palestinianos mortos só desde dia 7, entre os quais 4000 crianças bem reais, assassinadas por Israel, ou as outras ainda desaparecidas, que estarão debaixo dos escombros das próprias casas, feitas em pó pela máquina de guerra sionista. Israel conseguiu matar mais crianças, numa semana, do que a Rússia, em 18 meses, em sucessivos e deliberados bombardeamentos. Somam-se mais crianças mortas, na Palestina, em 30 dias, do que na totalidade das guerras em curso, no mundo inteiro, desde 2019. Este número, que não pára de crescer, demanda assíduas e dilacerantes actualizações, todos os dias. É de uma hipocrisia inclassificável fingir que estamos perante um conflito de igual para igual, ou culpabilizar ambas as partes da mesma forma. A quantidade de mortos e presos, desde os anos 40, falam por si, todavia, está estabelecido que há vidas que valem mais do que outras. O grande capital quer convencer-nos de que só os seus mortos merecem o nosso pesar.

31 dias, 10 000 mortos.

Direito internacional? Não dá todas as respostas. Genocídio? Que exagero, os números são discutíveis, isto nunca se sabe ao certo. Cessar-fogo? É tempo de combater o terrorismo. Pausa humanitária? Isso permitiria ao Hamas reorganizar-se. As crianças? Israel pode e deve defender-se. Hospitais? Bases do Hamas. Escolas? Bases do Hamas. Crimes de guerra? É complicado.

Os famosos double standards também já são uma arte, indispensável a esta fórmula de desumanização do oprimido em abono do opressor. Foi James Baldwin, autor norte-americano, quem escreveu, em 1979, o que, aos dias de hoje, é por demais evidente: o Estado de Israel não foi ali criado para proteger os judeus, mas para proteger os interesses ocidentais.

O ataque do Hamas, ou antes das Brigadas Izz al-Din al-Qassam, tem, sim, um contexto, e esse contexto são décadas de opressão que não podem passar impunes. Não aconteceu do nada, disse o próprio António Guterres, que não é, como sabemos, propriamente um radical. Por defender o cessar-fogo, condenando a punição colectiva dos 2,2 milhões de pessoas que residem no que sobra de Gaza, Israel, Estado à face da Terra que mais desrepeita o direito internacional, exige a demissão de Guterres. E, para “dar uma lição à ONU”, depois de matar mais de meia centena dos seus funcionários no terreno, já se encontra a recusar vistos. Não foram assim tantos os que se levantaram em defesa de Guterres, ou da ONU.

Eis que o ocidente tem uma regra muito simples: a violência que nos agrada é legítima defesa, já a que nos repele não passa de terrorismo.

Porém, verdadeiramente terrorista é o assassinato de uma criança palestiniana a cada 10 minutos.

Terroristas são os ataques aéreos a 200 escolas, mais de 40 hospitais e cerca de 300 000 habitações e abrigos, onde 70% das vítimas mortais são mulheres e crianças. Terrorista é largar bombas em campos de refugiados que, note-se, só existem porque o passatempo preferido de Israel é escorraçar milhares de pessoas das suas moradas. Sangrentas foram as mortes de 26 jornalistas, em Gaza, que só estavam a fazer o seu trabalho, para que pudéssemos ver melhor a realidade inconveniente que não passa na televisão. Desumana é a condição das 50 000 mulheres grávidas, na Faixa de Gaza, e dos 130 bebés prematuros em incubadoras, que, provavelmente, não sobreviverão ao corte de electricidade. Indescritível é que haja cerca de 25 000 feridos em hospitais a abarrotar, com o chão a servir de cama, e nos quais as cirurgias são feitas sem anestesia, com o auxílio da lanterna dos telemóveis. Indescritível é haver mães feridas a segurar, em pé, no saco de soro dos filhos, quando não na branca mortalha que lhes cobre o cadáver. Criminosa é toda a ocupação da Palestina por Israel, com o apoio incondicional dos líderes norte-americanos e europeus, que fazem esvoaçar bandeiras israelitas nas instituições de poder e proíbem manifestações contra o genocídio em curso. Entre 39 mesquitas e 3 igrejas bombardeadas, encontra-se uma das igrejas mais antigas do mundo, a de São Porfírio de Gaza, cuja fundação remonta ao século V e que, nos últimos anos, abrigou, como abrigava à data do bombardeamento por Israel, centenas de pessoas, 30 das quais não voltarão a abrigar-se em parte alguma.

Mais de metade dos hospitais, em Gaza, pequena porção de terra com uma das maiores densidades populacionais do mundo, fecharam completamente por falta de meios. Todo o sistema de saúde está a colapsar. 1 milhão de pessoas estão sem casa. Já irrompem, a uma velocidade assustadora, surtos de doenças provocadas pela falta de água potável. Foram assassinadas famílias inteiras, professores, médicos, e, inclusivamente, o único cirurgião plástico especializado em queimaduras, as quais se multiplicam nas inúmeras explosões, em todo o território de Gaza. Foi vítima mortal de um ataque aéreo a romancista e poeta Heba Abu Nada, de 32 anos, autora do premiado romance O oxigénio não é para os mortos, título corajoso que, por si só, é reflexo do sufoco provocado pela ocupação.

Israel ordenou à população que evacuasse o norte de Gaza, porém, além de não haver combustível e só ser possível a deslocação até ao sul, já que é de um campo de concentração a céu aberto que falamos, também o sul é severamente atingido por bombardeamentos. Na própria Cisjordânia, já morreram cerca de 200 palestinianos, muitos deles, às mãos de colonos armados. Se liquidar o Hamas serve de absolvição à carnificina, em Gaza, qual a justificação para matar palestinianos, na Cisjordânia, onde o Hamas não tem influência? Nenhum lugar é seguro. A propaganda já não cola. Por cá, se ligarmos a televisão na SIC, ouviremos Henrique Cymerman afirmar que tudo isto é, além de justificável, necessário. Tudo isto são casualidades.

Deus não disse nada disto a Abraão.

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de um Estado terrorista, participou, pessoalmente, enquanto militar, em – diz a Wikipédia – diversas missões. Aqui, diremos massacres, para que jaza irretorquível a sua laia. O próprio Netanyahu já não esconde as suas veras intenções, sugerindo a completa destruição de Gaza, para que não reste vivalma, enquanto assistimos, paralelamente, à suavização do seu fanatismo assassino, na imprensa ocidental. Afinal, o líder de um país democrático não pode ser ouvido a dizer coisas dessas. É Netanyahu quem exige, sem sentido figurativo, diante do mundo inteiro, a consumação da profecia de Isaías (2:2-4), apelidando os israelitas de povo da luz, e os palestinianos de povo das trevas. É Netanyahu quem trivializa e legitima o extermínio de um povo, para dar vida às ciladas do Velho Testamento, que só os abutres sionistas interpretam de tal forma. É Netanyahu quem vem dizendo explicitamente, desde os anos 80, que os palestinianos não têm direito a um Estado independente. Foi Israel que construiu uma maquete em tamanho real da Faixa de Gaza, base secreta para exercícios militares, onde os soldados praticam, até à exaustão, uma invasão terrestre desse território. Não podemos dizer, de consciência limpa, que tudo se deve a um ataque-surpresa, quando a invasão de Gaza é planeada há anos. É Israel quem impossibilita quaisquer acordos de paz, pois que jamais existirá paz sem plenitude de direitos. Tenhamos isso em mente sempre que a resistência palestiniana for acusada de intransigência relativamente à solução dos dois Estados.

“O foco é a destruição, não a precisão”, confessou, ao Haaretz, Daniel Hagari, porta-voz do exército israelita. O que o Estado de Israel realmente quer, por debaixo da ladaínha que ressoa nas televisões e muito se usa como disfarce, é apagar o rasto a um povo e à sua história, expulsando e matando quem ainda não foi expulso ou morto. Mas, nem este povo baixa os braços, nem a história perdoará.

Aquando do ataque aéreo ao hospital al-Ahli, que não só atendia a milhares de feridos, como servia de abrigo a quem já não tinha mais para onde ir, as televisões recorreram fortemente ao relativismo e ao clássico “precisamos de tempo para averiguar”. Cerca de 500 pessoas perderam a vida, mas isso nunca impediu a comunicação social de brincar com coisas sérias, tentando atribuir a explosão em causa a um rocket defeituoso e mal lançado pelo Hamas, ilibando, assim, Israel. Isto como se um rocket, que geralmente não passa de uma bugiganga artesanal, fosse capaz de causar tanto estrago. Várias investigações foram feitas, nomeadamente pela Al Jazeera, que Israel – essa excelsa democracia – quer banir por disseminar demasiada verdade. Essas investigações provam que o Hamas não lançou qualquer rocket à hora da explosão, no entanto, marionetas da NATO como o Major-General Isidro Morais Pereira, a quem os factos pouco ou nada interessam, continuam a culpar, em directo, o Hamas, e a negar textualmente que Israel seja culpado de crimes de guerra. Não deve ter visto o tweet, publicado por Hananya Naftali, em que é reivindicado, pela Força Aérea Israelita, o ataque ao hospital, dado que, no seu interior, estaria, alegadamente, uma base do Hamas. Há sempre uma qualquer base do Hamas a estorvar, não é mesmo? Celebra-se, no mesmo tweet, a morte de terroristas. Este foi prontamente eliminado, esquivando-se às duras críticas que surgiam pelo mundo inteiro, de modo a proceder à difusão de uma versão alternativa. O próprio New York Times já veio desmentir a versão de Israel, mas nem por isso pestanejaram as civilizadas pombinhas da paz da Comissão Europeia. Aqui está mais um segredo da vasta agenda de desumanização: escudos humanos também não são gente e Israel tem uma maneira muito peculiar de atribuir tal rótulo. Se urge aniquilar o Hamas e este está espalhado por todo o território da Faixa de Gaza, todos os que não forem já reconhecidos terroristas, serão diariamente despromovidos a escudos humanos, permitindo-se a destruição de tudo quanto permaneça de pé. Nenhum bem de primeira necessidade existe em abundância, em Gaza, mas, na distribuição do estatuto de escudo humano, não há mãos mais largas do que as mãos sionistas. “Matem as suas famílias, as suas mães e os seus filhos”, exclamou, diante de reservistas, o veterano Ezra Yachin.

Além do hospital al-Ahli, Israel já bombardeou o único centro de oncologia, em Gaza, e uma série de edifícios ao redor do hospital Al-Quds, além de alegar que o Al-Shifa é um posto de comando do Hamas, mesmo após médicos europeus o terem negado categoricamente. Ordena, então, a evacuação destes dois últimos, como se fosse possível relocalizar centenas e centenas de feridos graves, ou dezenas de milhares de pessoas que lá estão abrigadas, de um dia para o outro. Não é que Israel não saiba que exige uma impossibilidade, mas, para as Ursulas von der Leyen desta vida, é fundamental avisar com jeitinho, antes de proceder a um massacre. Nas palavras de Merav Ben-Ari, membro do Knesset, “as crianças de Gaza estavam a pedi-las”.

Enquanto aos palestinianos é negado o acesso a bens de primeiríssima necessidade, para que, caso não morram numa explosão, possam também morrer à fome e à sede, uma influencer norte-americana radicada em Tel Aviv – onde, já agora, se tem vivido e convivido normalmente com um genocídio a pouco mais de 70 quilómetros – faz vídeos queixando-se fatalmente da falta de farinha sem glúten “em tempos de guerra”. Ao passo que a Meta suspende, do Facebook e do Instagram, a maior plataforma de notícias a partir de Gaza, de nome Eye on Palestine, criadores de conteúdo sionistas fazem paródias repugnantes do sofrimento do povo palestiniano, sem que qualquer consequência sobre eles recaia, banalizando e alimentando o racismo já entranhado na sociedade israelita, que se ri ao assistir à tragédia que provoca. Quando Greta Thunberg demonstrou, publicamente, o seu apoio à causa palestiniana, Israel teve o desplante de lhe responder num tom jocoso, dizendo que os rockets do Hamas não são feitos com materiais sustentáveis. Em Gaza, quase não sobra combustível para as escavadoras que desenterram os cadáveres. Novamente, não decorre um conflito, mas uma ocupação que desconhece limites. O ocupante, de tal forma acima da lei, não será sequer sancionado. Pode, aliás, dar-se ao luxo de fazer piadas, ou de cortar a meio as declarações da idosa, feita refém pelo Hamas e, agora, em liberdade, por estas não favorecerem a fábula sionista. Ninguém leva a mal.

Ainda sobre terrorismo.

Foram lançadas mais de 12 000 toneladas de explosivos, sobre Gaza, em apenas um mês, superando, conjuntamente, o potencial da bomba atómica de Hiroshima. Ainda assim, há quem hesite em reconhecer o genocídio. São cerca de 5 quilos de explosivos por cada civil, cada criança, respondendo à paranóia sanguinária de Itamar Ben-Gvir, Ministro da Segurança Nacional de Israel, que fez questão de reiterar que a única coisa que deve entrar, em Gaza, não é ajuda humanitária mas centenas de toneladas de explosivos da IAF. Ben-Gvir e a mulher já distribuíram, pessoalmente, armas a colonos, no Banco Ocidental. Entretanto, as crianças palestinianas escrevem, no próprio corpo, os seus nomes, para que possam ser identificadas, acaso morram na sequência de um bombardeamento. Há dias, uma certidão de óbito foi redigida, a um recém-nascido, antes de lhe ser atribuída a de nascimento. Asem, de 11 anos, viu morrer os pais quando a sua casa foi demolida por um ataque aéreo, e partiu, com os dois irmãos mais novos, para a casa da tia. Logo a seguir, a casa da tia fora igualmente bombardeada. Gideon Sa’ar afirma que é o preço a pagar. Serão Asem e os irmãos terroristas?

Tala Aydi passou 4 dias presa debaixo de escombros, Rosey perdeu a irmã gémea, Omar e Soso Ashour ficaram órfãos. Farah, força da natureza, mesmo estando ferida, diz, brincando, que Israel lhe estragou o penteado, e saúda o seu povo, pronta para continuar a lutar. O jornalista Mohammed Al Ahqar encontrou, no momento em que fazia uma reportagem, a família toda entre um grupo de feridos. O seu colega de profissão, Mohammed Aloul, encontrou mortos os 4 filhos, após o ataque aéreo que vitimou o campo de refugiados de Al Maghazi, no centro de Gaza. Médicos, paramédicos e enfermeiros deparam-se, recorrentemente, com familiares e amigos cobertos de pó e sangue e, muitas vezes, sem vida. Não têm tempo para o luto. As crianças que sobrevivem sonham em ser médicas para curar as vítimas dos ataques israelitas, ou arquitectas e engenheiras para reconstruirem as suas casas, em ternurentos vídeos de Mohannad Abu Rizk, que dão voz à resistência dos mais pequenos. Amal Ramzi Nusair guarda, numa mochila que leva para todo o lado, todos os seus livros e diplomas da escola, acaso tenha de fugir. Sim, também eles têm um nome, contudo, Yoav Gallant, actual Ministro da Defesa, diz-nos que não passam de bestas sem direito a electricidade, água ou comida, e Dan Gillerman, ex-embaixador de Israel na ONU, não percebe a preocupação que o mundo sente em relação aos palestinianos, já que os considera, nada mais, nada menos, do que “horrible inhuman animals”. O académico Mordechai Kedar, pelo contrário, não aceita que os palestinianos sejam apelidados de animais, porque não quer ofender os animais. O sangue que pinga das suas mãos alastra-se às de quem se cala perante a limpeza étnica que vemos em directo. A indiferença também mata.

No que toca à torneira, esta abre ou fecha consoante o que dá na gana a Israel, desde Junho de 1967, quando se apoderou totalmente dos recursos hídricos da região, bem como de todas as infra-estruturas, nos territórios ocupados, após a Guerra dos Seis Dias. Se agora escolheu fechá-la, indefinidamente, para supliciar os habitantes de Gaza – refugiados na sua própria terra ou 2,2 milhões de autênticos reféns que não recebem um décimo da atenção de que são alvo outros 200 – sempre utilizou a água como instrumento de tortura, implantando aquilo que a Amnistia Internacional designou por Ocupação da Água, num artigo de 2017. O corte de todas as comunicações constitui mais um abominável crime de guerra por parte de Israel, que quer agora impedir a comunidade internacional de assistir à escalada de um genocídio por que clama há décadas. Organizações humanitárias diversas, reconhecidas internacionalmente, deixaram de ter contacto com os seus funcionários e/ou voluntários. O controlo israelita sobre o interruptor é já responsável por largas centenas de mortes. É tempo de dar aos povos o controlo sobre as suas próprias torneiras, o domínio dos seus interruptores, o direito à paz e ao azul dos seus mares.

E, para mal dos pecados de Dan Gillerman e demais vampiros, raiam, por todo o mundo, manifestações a perder de vista, em solidariedade com o povo da Palestina. Enquanto uns ensinam a desumanização e a guerra, os palestinianos têm-nos ensinado a resistência, seu maior património. Os palestinianos, diria Rafeef Ziadah, ensinam vida. Não seremos cúmplices do seu genocídio, não ficaremos especados diante rios de sangue ou pilhas de destroços – sairemos à rua, pintaremos paredes, escreveremos a verdade. Disse o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, que a história não perdoará os indiferentes, e os cubanos sabem bem do que falam. Em nome da auto-determinação dos povos de todo o mundo, quando a Palestina vencer, venceremos todos. Temos, sim, de escolher um lado, de exigir o cessar-fogo e lutar pela libertação. O oxigénio, Heba Abu, será todo nosso.