O decadente charme de uma burguesia em queda

Nacional

Falar sobre Buñuel é evocar a sua tradição mordaz de realização de filmes que se entrecortam com a realidade que é, a realidade que podia ser, a realidade que se sonha. De um minuto para o outro, passamos de um cenário (um dos!) onde janta a burguesia com as suas máscaras e preconceitos enquanto analisam a vida dos pobres, como no momento seguinte, são eles que estão a ser vistos por esses mesmos pobres, que se sentam nas cadeiras do teatro enquanto vaiam ostensivamente o costume pequeno-burguês.
Um machista assumido, que fugia dos homossexuais, acabou ele mesmo por ser perseguido pela sua crítica ávida aos costumes religiosos e ao modo de vida da burguesia, que era, afinal o seu.

Le charme discret de la Bourgeouisie , de 1972, vale-lhe um Óscar para melhor filme estrangeiro que retrata a arrogância, a falta de escrúpulos, a desonestidade e amoralidade da burguesia. Farão o que for preciso até onde for preciso. Bem como este gangue ministerial, que não poder arrogar-se sequer de qualquer charme. Nem discreto, nem evidente. Nesse campo era rei o Paulo Portas, mas nem este escapou à decadência dos seus próprios costumes.

Também em Belle de jour (1967, A bela da tarde), uma jovem burguesa (Catherine Deneuve), muito frígida com o marido, se prostitui numa discreta casa de passe, dando rédea solta às fantasias dos clientes. Buñuel quase deixou a interpretação toda a quem assiste ao filme. Parecendo uma espécie de libertação feminista do corpo e da mente, a infelicidade e incomodidade acaba por consumir Catherine Deneuve que se apercebe que a ilusão burguesa de que a emancipação sexual se faria pelo comércio do corpo não era tão sedutora como pareceria.

E Buñuel era um provocador nato. Na tela, com os amigos, na vida que levava. Numa resposta a Gala, de quem se teria afastado, na última carta que lhe enviou afirma:

«Recebi os teus dois telegramas. Fantástica a ideia do filme, mas retirei-me do cinema há cinco anos e quase não saio de casa. É uma pena. Um abraço: Buñuel.»

E remeteu-se ao branco da tela.

Tal como Buñuel retratava, a arrogância, a amoral, a mentira ainda soçobram nesta burguesia decadente que nos vai governando. E tal como a cena do filme, os espectadores estão atentos, as cortinas mais abertas. E eles não sabem, mas de repente o pano abre-se e soltam-se palavras de luta, faixas que dizem não e vaias que ressoam e vão ressoar até que todos se retirem de cena.

Pela arte, aprendemos muito sobre o ser-se humano. E a humanizarmos o ser. E também pela arte, transformamos sonhos, roteiros e guiões, em vida.