O direito a ser família

Nacional

A noção de família está em constante mutação. Ela diverge não só na sociedade mas também em cada indivíduo. O que para um significa viver sozinho, sem filhos, para outro significa viver com um ou uma companheiro/a, sem filhos, para outros, com filhos. Esta mutação tem gerado um intenso debate com as naturais complexidades que se nos colocam ao encontrar soluções para dar resposta legal a assuntos que talvez há uma década nem sequer se pusessem. É o caso, por exemplo, dos enteados (palavra tão negativamente carregada) que não têm direitos na sua relação com os padrastos e madrastas e até hoje apenas em França se encontrou uma forma de ir resolvendo com legislação sobre co-parentalidade.

Assim, não é difícil perceber que para muitos, a compreensão dessa mudança surja em momentos diferentes, em tempos diferentes do nosso tempo. Para outros, essa mudança não surge por opção política, pela ideologia que lhes determina, à partida, que os direitos não são para todos.

Da minha parte, a questão sobre a legislação hoje discutida na Assembleia da República e amanhã votada, no que diz respeito à adopção por casais do mesmo sexo, tem uma resposta simples: a desnecessidade dessa mesma lei, uma vez que – reitero, na minha opinião – não se pode negar a uma criança o direito a ter uma família. Isto é: o foco é na criança, não num qualquer direito de «propriedade» sobre outrem. E como não há definição jurídica de família, a sua constituição através de mecanismos legais não pode estar vedada. Mas está. E propõe-se que deixe de estar. Com toda a justeza, apesar do sabor amargo na boca da regulamentação de direitos fundamentais.

Em 2013, quando o PSD se propunha a alterar esta injustiça votando a favor da co-adopção (que, na verdade, resolvia apenas parte do problema) e recuou pretendendo referendar direitos fundamentais, houve uma esperança de que fosse dado este passo, tão necessário, em termos civilizacionais. E é bom que não esqueçamos o tempo de antena dado a Marinho Pinto para que proferisse, em seu nome, usando o estatuto de Bastonário da Ordem dos Advogados, afirmações preconceituosas, cruéis e desumanas.

À data, desafiei amigos meus do direito, a tomar uma posição pública. A primeira posição pública, desde que ingressei na Ordem dos Advogados, que rapidamente colheu a concordância de mais de uma centena de advogados que deram o seu nome e n.º de cédula, repudiando essas declarações. Fomos ameaçados de processos disciplinares e apelidados de «colegas homossexuais» pelo senhor Marinho Pinto. Mas ainda hoje é o dia em que lembro o episódio com a dignidade de jamais deixar de defender o que acredito. Todos nós.

E hoje, mantêm-se as razões pelas quais a adopção – seja por quem for – é um imperativo constitucional e civilizacional. Nessa carta aberta, em que fui primeira subscritora, afirmámos:

Os n.ºs 1 e 3 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa determinam também que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade e que os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.

«Nos termos do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei e ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Os n.ºs 1 e 3 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa determinam também que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade e que os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos. Consideremos ainda os artigos 67.º e 68.º da CRP. Prevê o n.º 1 do artigo 67.º que a família [sem qualquer definição social ou legal de família], como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. Que, do mesmo modo, o artigo 68.º estabelece que os pais e as mães [individualmente considerados!] têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país, constituindo a maternidade e a paternidade valores sociais eminentes

No dia 22 de Janeiro, a Assembleia da República tem nas suas mãos a possibilidade de corrigir uma injustiça muito grande, com impactos concretos:

– Apenas os pais biológicos ou adoptantes (na actual legislação) têm direitos de acompanhamento da criança em termos laborais (faltas para assistência médica, para acompanhamento escolar, acompanhamento de menores com doença crónica ou deficiência);
– Apenas os pais biológicos ou adoptantes podem visitar a criança no hospital e acompanhá-la em caso de parto ou internamento;
– Apenas os pais biológicos ou adoptantes podem requerer prestações sociais como o abono de família, complemento por dependência ou deficiência, subsídio por maternidade ou paternidade;
– Apenas os pais biológicos ou adoptantes se podem deslocar livremente pelo país ou para o estrangeiro com a criança;
– Apenas os pais biológicos ou adoptantes deixam a sua herança aos filhos.

Imaginemos que um casal de pessoas do mesmo sexo, em que uma delas tem relação de filiação biológica e outra não. A primeira morre. A criança ficará totalmente desprotegida, podendo mesmo ser entregue a uma instituição.

É isto que a sociedade quer quando se diz contra a adopção?

Pela minha parte, entre as chamadas grandes e as chamadas pequenas questões políticas, a injustiça não é mensurável. Esta é uma delas. Amanhã, o PCP votará a favor da adopção plena por casais do mesmo sexo. E eu renovo a confiança no PCP que tem a capacidade de interpretar e ter em conta, na sua análise social, as mudanças e o sentir colectivo.

Todos a favor.

*A imagem, essa, só podia ser da Nan Goldin