O meu amigo Abdul

Nacional

São dez da manhã e ele não estava lá. Não sei ao certo há quantos meses o conheci, talvez seis, talvez mais. Costumava estar ali, na rotunda do Marquês de Pombal, com a constância das manhãs e da estações, a entregar o Destak ao enxame que desagua do metro sempre à mesma hora. Alto, passo firme, ágil a entregar os jornais, gorro encarnado bem seguro sobre a calva. A pele negra e gasta dava-lhe um ar amarrotado de quarenta anos, mas os olhos adolescentes traíam-no. As primeiras vezes que me estendeu o jornal, só aceitei porque custa mais despachar dois mil jornais do que deitar um no lixo. Nunca tenho tempo para o ler e aquele jornalismo telegráfico e gratuito, que pontua como asteriscos as grandes publicidades a champôs, envergonharia até a secção “Insólitos” do Correio da Manhã.

E no entanto bastou esse gesto simples, o de estender o jornal e o de o agarrar, para criar a única familiaridade do meu caminho entre casa e o trabalho. Todas as outras caras, no comboio, depois no metro e ainda a subir a rua, são sempre aleatórias e imemoráveis, produto das estreitas probabilidades dos semáforos e dos transportes públicos e peões nos passeios da nossa condução frenética. Mas o Abdul não. Ele estava sempre lá. Só passado várias semanas lhe conheci o nome. Nessa altura, já a tradicional transacção publicitária tinha substituído o silêncio por um anuente aceno de cabeça, a que se seguiu um sorriso de lábios recolhidos por recato, a que sucedeu o “bom dia” que durou até há pouco tempo. Nessa manhã, tinha feito uma pausa para o café e encontrei-o de pé ao balcão, a tomar um café. Porque o café estava muito cheio, ele encolheu-se e eu fiquei ao seu lado.

E então, assaltou-me a memória, com o estrépito das súbitas impressões de prova, a inexorável sentença de Marx: “Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui.”

“Trabalha aqui perto?” Perguntou-me. Disse-lhe que sim e pedi-lhe para me tratar por tu. “António”, “Abdul”. Apertámos as mãos. “E já trabalhas aí há muito tempo?” Perguntou-me. Respondi que não, que era só um contrato de um ano. “Olha, bem bom… nós ninguém tem contrato. Não precisam de ti vais para a rua”. Explicou-me que ganhava duzentos euros por mês, por cinco horas de trabalho diárias. Protestei que era uma vergonha. Ele tirou o gorro. “Tá fodido man… os gajos dizem-te assim: isto tá difícil para todos, se não quiseres compreendemos, mas só conseguimos mesmo assim. Mas é só estalar os dedos e aparecem quinhentos putos que aceitam, se for preciso até por menos, até por nada, caralho, para ganhar experiência”. “Pois,” concordei “mas para eles não está nada difícil: quanto mais pobres forem os trabalhadores, mais ricos são os patrões…” O Abdul escutava-me com atenção. Não tenho muito jeito para conversas em que é preciso interromper os outros para poder falar e nunca fui bom a entreter os monólogos de quem só quer ser ouvido. “É preciso dizer que não, pá” continuei “se não lutarmos contra esta merda acabamos escravos outra vez”. O Abdul torceu o nariz… “O que é que vais fazer, és sempre tu que te fodes” Eu lembrei-o do 25 de Abril, que por uma vez foram os ricos que se foderam, mas ele explicou-me, num português perfeito, que não tinha papéis, quer dizer, nasceu em Portugal, mas como os pais eram ilegais, ele não é português. Os pais tinham vindo da Guiné no princípio da década de oitenta. Foram viver para a Cova da Moura, na Amadora. A mãe nas limpezas, o pai na construção. Ele também já fez isso, mas depois “teve um problema” e não pôde continuar. Perguntei-me o que teria acontecido, mas não quis questioná-lo. Fez-se um silêncio e eu levei o bolo à boca. Reparei que tinha ficado com os dedos sujos de tinta de jornal, por lhe ter apertado a mão. Disse-lhe por fim “Sozinho é claro que não se pode fazer nada, mas quando nos unimos temos muita força” Ele concordou. “Mas é fodido unir os pobres, tá sempre tudo preocupado com pagar a merda da renda ou a creche do puto. Sabes quanto é que eu pago só de creche? 200 euros! É normal que ande tudo a olhar para o próprio umbigo.” Contou-me que há uns anos houve um patrão que não quis pagar os salários dos distribuidores de publicidade. Ele ameaçou ir à polícia ou ao sindicato. O patrão chamou sete gorilas para lhe bater. Partiram-lhe três dentes, deixaram-no quase morto. “Eu não tinha medo dos gajos!” garantiu-me. “Mas tenho um puto pequeno, tás a ver? Quem nos safa é a minha mulher, que tá a full-time, porque só com o que eu ganho, não dava para nada. Tás a ver a entrega de gás ao domicílio? Quando saio daqui vou levar bilhas, tenho lá um part-time. Agora vão deixar de pagar a gasolina.”

Abri a mala e tirei um panfleto da CGTP. Para os comunistas, a propaganda política é como o isqueiro para os fumadores, serve sempre para começar uma conversa. Ele leu-o na transversal. “Contra a exploração! É quando, isto?… Ya, talvez vá, man”. Eu sorri. Disse-lhe que precisávamos dele para fazer frente a esta merda. Que se nos uníssemos, podíamos viver melhor e correr com este governo de ladrões. “Olha, vou-te dar um contacto do sindicato, liga para esse gajo. É boa gente”. O Abdul perguntou-se se o patrão não ia saber, se ele não se ia lixar. Eu prometi-lhe que não. Sobre o balcão de vidro riscado, o Abdul poisou a fotografia do filho de mais ou menos cinco anos.

Tudo isto foi há vários meses. Depois, ouvi dizer que ele se tinha sindicalizado e todas as manhãs quando o via, parava no meio do trânsito dos carros ou na boca do metro contra a corrente da multidão, para lhe apertar a mão, lhe perguntar como ia o puto, como estava a mulher. O Abdul era a melhor parte do meu caminho para o trabalho.

Até que um dia, há um mês atrás, percebi que alguma coisa não estava bem. No meio da rotunda, estático com jornais na mão, encontrei o Abdul triste, com um ar exausto, como se não dormisse há muitas noites. Eu estava atrasado, mas perguntei-lhe se estava tudo bem e ele disse-me que a mulher tinha perdido o emprego, mas que estava tudo bem. Respondi algumas palavras de conveniência, disse que lamentava, que sentia muito, que outra coisa havia de surgir e despedi-me, com vergonha de não ter tempo para falar melhor com o meu amigo Abdul. Esta foi a última vez que o vi. E todos os dias, como hoje, enquanto atravesso o Marquês para chegar ao escritório, penso na enorme violência daquele despedimento, na grande brutalidade de não ter dinheiro para um filho pequeno, na insuportável injustiça de trabalhar o dia todo para viver à beira da miséria.

Depois, continuei a subir a Joaquim de António Aguiar, a fintar os carros de luxo nas intersecções, a passar pelas lojas onde os ricos compram sapatos pelo valor do meu salário, a ler os reclames ubíquos ao seu enorme poder. E então, assaltou-me a memória, com o estrépito das súbitas impressões de prova, a inexorável sentença de Marx: “Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui.” Eu gostava de poder acreditar que a bondade humana bastaria para mudar o mundo. Mas são dez da manhã e ele não estava lá.