A mão que embala o berço

Nacional

Passos Coelho devolveu a Ricardo Salgado a carta em que o banqueiro apelava a uma intervenção do Governo na salvação do Grupo Económico. Mas Ricardo Salgado leu-lha. Passos Coelho fica assim liberto da prova material, mas isso não o iliba do facto de ter sido um dos que soube do conteúdo da carta, tal como a Ministra das Finanças e o Presidente da República a que se acrescenta Durão Barroso, o extraordinário português que tanto beneficiou a sua pátria ao desempenhar os mais altos cargos internacionais.

Que um banqueiro sinta suficiente “à-vontade” para enviar cartas aos titulares de altos cargos públicos a pedir atenção especial aos seus problemas já é estranho e mais estranho ainda é o facto de terem sido precisamente estes os titulares de cargos públicos a assumir publicamente posições de defesa do Grupo Espírito Santo e do Banco Espírito Santo. Cavaco Silva, Maria Luís Albuquerque, Passos Coelho fizeram parte do cortejo de figurões que vieram a público dizer que o BES era um banco sólido. O Banco de Portugal, através de Carlos Costa, seu Governador, também se atravessou e, na véspera do colapso do BES, ainda emitiu um comunicado oficial a dizer que o Banco estava bom para investimentos privados.

Entretanto, durante décadas, o Grupo Espírito Santo mantinha relações privilegiadas com o poder.

Durante toda a intervenção da troika estrangeira em Portugal, Miguel Frasquilho, director de um departamento do BES, participava nas reuniões à porta fechada entre a Comissão Parlamentar de Acompanhamento do Programa da troika, pelo Grupo Parlamentar do PSD. Poucos meses antes de o caso BES vir a público, mas já depois de se saber internamente que as contas da ESI estavam falsificadas, curiosamente, Miguel Frasquilho abandona o parlamento para se colocar como Presidente do AICEP – isso sucede em Abril.

Pela mesma altura andava Ricardo Salgado a mandar cartas para quem pudesse estender a corda ao império do Espírito Santo. Arnault, José Luís, ex-ministro de Durão Barroso, deputado e dirigente do PSD fez o que pôde. Durão Barroso já tinha tido um cargo indecifrável no BES – com carro, motorista e remuneração não se sabe para quê, nem a título de quê – e agora Arnault, advogado escolhido pela Goldman Sachs para altos cargos no Banco, faz um jeito e consegue um empréstimo para o BES de 680 milhões de euros.

Arnault que alinhou pelo diapasão de Cavaco Silva ao afirmar que “Ricardo Salgado deixou um banco robusto, com capital e credibilidade.”

O banco estava ligado à máquina há muito tempo. Ricardo Salgado disse na Comissão de Inquérito que nunca o Grupo teve relações privilegiadas com o poder político, mas que se orgulhava de ter formado muitos quadros para a política e de ter recrutado na política quadros muito capazes.

Claro que uns foram para a política promovidos pelo BES, apoiados e financiados, desde cedo, depois de serviços prestados ao Banco. Outros foram para ao BES por terem usado o cargo político ao serviço do Banco. Cavaco foi o candidato a Presidente da República que mais simpatia recebeu sob a forma de euros, aos milhares, dos membros da família Espírito Santo e não se fez rogado quando se tratou de os justificar vindo a público dizer que o investimento no aumento de capital do BES era seguro. Não era seguro, mas os milhares de euros que a candidatura de Cavaco recebera já estavam seguros numa conta qualquer.

A falsificação das contas da ESI tem sido o centro das atenções porque é a única forma que encontram para colocar o problema num acto, num momento, numa pessoa, ou num conjunto delas. No entanto, a falsificação das contas é um pormenor no quadro geral: o BES era um reservatório de capital (dos depositantes) para financiar uma família que desviava milhões para créditos e remunerações a si mesma e aos seus lacaios. Isso não começou em 2008, altura em que supostamente se inicia a ocultação de passivo da ESI.

E todos nos lembramos de que foi pela mão destes banqueiros que a troika entrou em Portugal, recordamos como os governos se curvaram ao longo dos tempos ao magnânimo exemplo de empreendedorismo de Salgado, modelo de patrão e de visionário, levando a cada canto do mundo a bandeira de Portugal. Também recordamos o quanto lucraram com a dívida pública portuguesa e falta apurar quanto desse lucro foi directamente para os off-shores e para as holdings da família, numa burla cuja origem não é a maldade da mafia familiar, mas a natureza de um estado capitalista corrupto, de um sistema financeiro privado hegemónico que controla o Estado na sombra, escondido por detrás da democracia de fachada.

Mas basta uma fresta para que entre a luz.