O Inferno é a barca e as suas timoneiras

Nacional

Fazer um programa só com mulheres para afirmar as mulheres na política é uma ideia interessante. Mas depois faz-se um programa com a) o Nilton, b) aquelas convidadas. Faz-me, por um lado, ter vergonha alheia não por achar que serão elas a bitola com que se vai avaliar o papel da mulher na política (não me parece, ou pelo menos espero que não seja esse o efeito) mas porque na discussão dos temas tudo se faz com uma displicência, ignorância e desconhecimento que não faz sentido nenhum. Por outro lado preocupa-me, porque, sendo a ignorância uma atrevida, a verdade é que quando as afirmações passam sem que sejam contraditadas, transformam-se em verdades.

Confesso ter sido a primeira vez que me detive mais tempo a ouvir (desisto frequentemente nos primeiros minutos d’A Barca do Inferno, que passa na RTP Informação), por me ter interessado a análise de Isabel Moreira sobre o direito à greve e o acórdão de serviços máximos do tribunal arbitral quanto à greve marcada para dia 10 de Abril pelos trabalhadores do Metro de Lisboa. O problema foi o que veio a seguir.

Quero mandar um beijinho aos trabalhadores do Metro e agradecer-lhes esta greve. Raquel Varela, Barca do Inferno, 13.04.15, cerca das 22.42.

“Quero mandar um beijinho aos trabalhadores do Metro e agradecer-lhes esta greve”, afirmou Raquel Varela, a 13.04.15, cerca das 22.42. Para concluir a sua análise do contrato de concessão do Metro com um “Tenho pena que não nos convidem, a nós, lisboetas, para irmos lá ter com eles. Eu ia, com todo o gosto lá ter com eles ao piquete. Levava-lhes um bolo e um beijo. Porque hoje é o dia mundial do beijo”.

Poderia dizer muita, demasiada coisa, sobre tudo isto. Mas vou só dizer que toda a intervenção foi feita no pressuposto da greve dos trabalhadores do Metro, que não aconteceu. E não aconteceu (mas sim dos trabalhadores da Carris) porque o tribunal arbitral violou e condicionou, de uma forma, a meu ver, absolutamente ilegal e infundamentada, o direito à greve, impondo serviços mínimos numa dimensão tal que prejudicaram, irremediavelmente, o direito à greve. Prepara-se para fazer o mesmo no dia 17 e vou então supor que a historiadora se está a referir à greve que aí vem.

Depois deste momento caricato, seguiu-se a intervenção de Manuela Moura Guedes sobre os privilégios dos trabalhadores do Metro de Lisboa, cujas greves prejudicam quem quer trabalhar. Para fundamentar a irrazoabilidade das greves e a justeza de quem as critica, Moura Guedes invocou:

a) Um regime especial de faltas dos trabalhadores que leva a que quando fazem greve não lhes seja descontado o dia, recebendo eles o salário, subsídio de assiduidade, subsídio de turno, subsídio de alimentação bom (mesmo tendo cantina) e todo o tipo de subsídios;
b) O facto de terem medicamentos pagos;
c) Os salários que recebem e todos rondam os mais de 3 000 euros.

Os únicos comentários de oposição a estes argumentos foram de Isabel Moreira que disse que os montantes salariais eram brutos (a que Moura Guedes contrapôs com os subsídios que acresciam) e que aquilo nada tinha a ver com a privatização dos transportes.

Ora, seria de esperar, no mínimo, que a oposição fosse feita com o que está, efectivamente, no acordo de empresa, mas não. Afinal, ninguém o conhecia a não ser Moura Guedes que, deliberadamente, mentiu sobre ele. Deixando assim que se propalassem as mentiras frequentemente ditas sobre as «regalias» dos trabalhadores do metro.

Então, e por partes:

Antes de mais, a contratação colectiva é um direito dos trabalhadores de conquista de condições de trabalho que não lhes são dadas pela legislação geral. Não são regalias, não são benesses. São direitos. Acordados por parte empregadora e trabalhadores.

a) Quanto ao regime especial de faltas, ele não existe. Existe sim, o Anexo V ao Acordo de Empresa, onde se estabelece o Manual de Procedimentos  Sobre Faltas e Ausências, por remissão da Cláusula 26ª, onde estão todos os comprovativos a entregar para comprovar as faltas (sendo que, relativamente ao regime geral há uma ou outra norma mais favorável, nomeadamente relativa a faltas por motivos de saúde ou cumprimento de obrigações legais). Não existe qualquer norma que determine que, em caso de greve, não lhes seja descontado o dia. E sim, têm subsídio de assiduidade e de turno, porque trabalham por turnos (todos os trabalhadores têm, ou deviam ter). Mas, e como não podia deixar de ser, só recebem esses subsídios, se efectivamente prestarem trabalho. Logo, estando em greve… Aliás, a palavra greve não aparece uma única vez em todo o acordo de empresa, o que se compreende: é um direito constitucional regulamentado pelo Código do Trabalho. É quanto baste.

b) No Capítulo VI do AE, Assistência na doença, acidentes de trabalho e doenças profissionais, a cláusula 37ª prevê a protecção na doença, em caso de «baixa» onde se prevê o pagamento por inteiro da assistência medicamentosa. Sobre isto, apenas tenho a dizer: pena que esta cláusula não esteja em todos os contratos.

Ou seja, o salário máximo que um trabalhador do Metro de Lisboa pode ter é de €1884,00 (brutos) e apenas no nível superior da sua carreira. O que significa, sendo, por exemplo, casado com dois filhos, um salário de 1.225,98€ líquidos. Ou, sendo solteiro, 1.244,17€. Ou ainda, casado e sem filhos, 1.380,52€. Uma fortuna, portanto. Na mesma ordem, para a base da tabela: 722,22€, 722,22€ e 772,27€.

Portanto, estes biltres que ganham principescamente e estão em luta contra a privatização do Metro, ou seja, contra despedimentos, contra um negócio ruinoso para o Estado, contra a destruição do património público, contra o previsível aumento dos preços para todos nós e degradação do serviço, perdem um dia do seu salário, numa luta que é de todos nós, mas são, afinal, é uns mal agradecidos porque têm muitas regalias.

Naquele debate, ninguém contrapôs o que disse Moura Guedes. Ninguém disse que tem sido a luta dos trabalhadores que tem mantido os transportes como serviço público e que estes têm lutado para que assim se mantenha, não pelas suas condições de trabalho mas pelo nosso direito – de todos – ao serviço público. E, portanto, a versão que passou, foi a que passa sempre. A do inferno. Porque os donos dele são os donos da barca. E as barqueiras ou timoneiras sabem para onde têm que remar. E remam sempre para o mesmo lado (com um ou outro apontamento) mas vão sempre parar ao mesmo sítio. Que não é, definitivamente, o sítio para onde remam e rumam os trabalhadores.

E foi a última vez que gastei o meu tempo naquela barca. E foi um inferno.