O orgulho operário de uma cidade

Nacional

Não há em Viana quem não tenha um familiar ou amigo que trabalhe ou tenha trabalhado nos ENVC. Alguns de forma directa, outros de forma indirecta. Na verdade, se hoje falamos de 620 trabalhadores, há não muitos anos atrás falávamos de cerca de 2000; se falamos de 620 trabalhadores esquecemos, no imediato, os quase 4000 trabalhadores que, indirectamente, dependem desta empresa. Não é preciso ser um génio para perceber que uma empresa da dimensão dos ENVC depende, e muito, de centenas de pequenas empresas fornecedoras de material, por um lado, e, por outro, permite que umas quantas dezenas de cafés e restaurantes sirvam, todos os dias, a massa operária dos Estaleiros. Passear pela zona ribeirinha da cidade só faz sentido se pudermos ouvir os ruídos dos guindastes, os barulhos das chapas, o soar estridente da sirene que à hora exacta permite aos operários pousar a ferramenta e ir almoçar, só faz sentido se pudermos cruzar o nosso olhar com aquelas centenas de operários envergando fatos azuis, desgastados por horas e horas de trabalho, que enchem as ruas da Ribeira. Viana do Castelo sem os Estaleiros não mais será igual.

Nascidos há 69 anos os ENVC marcam, de forma única, a cidade de Viana do Castelo e sublinham a sua secular ligação ao mar, mas marcam também todo o distrito e, até, o país. Em rigor, trata-se do único Estaleiro de construção naval português com capacidade de projecto. Sobretudo num momento em que vários outros estaleiros de construção e reparação naval foram amputados ou destruídos, a importância dos ENVC para o sector empresarial do Estado revela-se fundamental. É caso único no panorama português. Nos seus 69 anos de História foram ali construídas cerca de 200 unidades, desde vasos de guerra a ferry-boats, entre inúmeras reparações efectuadas.

Tal como acontece em tantos outros sectores da economia nacional, também esta empresa pública tem vindo a ser alvo preferencial daqueles que (ainda) ajustam contas com a Revolução de Abril. 69 anos após a sua fundação e 38 anos após a sua nacionalização – e o inegável sucesso que esse passo trouxe consigo – os ENVC estão a um passo da morte. Anunciada, é certo, mas sempre com a esperança que tal não viesse a acontecer.

De há uns anos a esta parte começaram algumas movimentações de bastidores no mínimo estranhas, em que as mais famosas serão, certamente, o caso do Atlantida – encomendado pelo Governo Regional dos Açores e que, depois de constantes alterações de projecto (a mando de quem?), não atingia as velocidades acordadas, tendo sido recusado pelo cliente com direito a pesada indemnização – e o caso dos asfalteiros encomendados pela Venezuela – para os quais não havia verbas disponíveis, por parte do Governo, para a compra do aço (cerca de 3 milhões de euros) que permitiria o início dos trabalhos. Outras poderiam ser aqui referidas, como a venda a preço de saldo de terrenos dos ENVC à Enercom pela mão de um antigo administrador dos ENVC que é actualmente, vá-se lá saber porquê, administrador da Enercom…

O mais grave teve inicio, porém, com os famosos PECs do PS/Sócrates: aí se previa a privatização da EMPORDEF, holding estatal que gere os ENVC, no decorrer da qual 400 trabalhadores seriam despedidos. Dizia-se que tal medida visava “salvar a empresa”, como se, sejamos honestos, um estaleiro de construção naval pudesse operar com 200 trabalhadores… Em abono da verdade temos de considerar que esta foi uma primeira tentativa de fechar definitivamente as portas dos ENVC, sem esquecermos, contudo, que já em 1995 Cavaco Silva, então primeiro-ministro, procurou privatizar, sem sucesso, a empresa.

Embora travados nesta primeira fase pela luta dos trabalhadores dos Estaleiros Navais, com os quais a população vianense sempre se solidarizou, os lacaios do capital não mais abandonaram a sua ideia primitiva.
Já com o actual governo a privatização voltou a estar em cima da mesa. Abandonada a ideia da privatização, eis que surge a tão fantástica concessão dos terrenos e materiais dos ENVC. Bem mais agradável do que a própria privatização, surge então a Martifer como única interessada no negócio. Por uns míseros 415.000€ anuais pode então a Martifer dispor dos terrenos e da maquinaria; nunca dos seus trabalhadores. Esses, obviamente, terão que ser despedidos, tendo já o governo disponibilizado uma verba de 30M de euros para tal. Ou seja, 72 anos de concessões…

Muitas perguntas têm surgido entretanto. Se o objectivo é salvar a empresa e os postos de trabalho, para que se fecha a empresa e despede os trabalhadores? Se o objectivo é viabilizar financeiramente os ENVC, para que se entrega os mesmos à Martifer, cuja divida no final de 2013 é de 378 milhões de euros (bem mais expressiva que a divida dos ENVC)? Se não havia dinheiro para que os ENVC pudessem estar em pleno funcionamento, como pode haver dinheiro para despedir 620 operários? Como pode o Estado gastar 72 vezes mais com despedimentos do que aquilo que recebe anualmente pela cedência dos Estaleiros?

Que não tenhamos duvidas: estamos perante um crime, cometido em plena luz do dia, e cujos autores não poderão ficar impunes. Os sucessivos governos do PS, PSD e CDS, lestos a nomear administrações incapazes que, em poucos anos, levaram a empresa a uma situação caótica, terão de ser responsabilizados por aquilo que fizeram. Bem pode a autarquia vianense tentar sacudir a água do capote, fingindo-se muito preocupada com os recentes acontecimentos. A verdade é que deu todo o apoio ao governo PS/Sócrates quando este procurou despedir 400 trabalhadores e, por conseguinte, encerrar a empresa.

Para muitos, é este o primeiro contacto com o capitalismo. Ficam, infelizmente, a conhece-lo no seu máximo esplendor. A todos eles fica, contudo, a garantia que podem contar (como sempre contaram!) com o Partido da sua classe para os defender, lado a lado, em todas as lutas que venham a travar proximamente. Para eles toda a nossa solidariedade de classe!

Autor Convidado *
João Moreira