O Processo

Nacional

Hoje escrevo na primeira pessoa.

Dos livros, das histórias que se contam, dos casos em tribunal, das séries sobre o fascismo estou sempre no lugar de espectadora. Mesmo quando sou eu a defender camaradas meus que são despidos em cadeias, insultados, jovens activistas ou militantes presos e desaparecidos horas, amigos agredidos por forças policiais e tantos, mas tantos militantes da JCP perseguidos criminalmente, emociono-me e defendo os casos sem distância. São também comigo.

O que se passou hoje, foi, efectivamente, comigo. Nada de especial, nada violento, mas absolutamente aterrador naquilo que revela.

No desempenho da minha actividade profissional fui a uma audição na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública que hoje ouvia entidades sobre a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

Uma lei criminosa, que baixa salários, destrói condições de trabalho, escancara a porta às privatizações, faz tábua rasa da Constituição da República Portuguesa, permite que centenas ou milhares de trabalhadores sejam despedidos, aumenta o horário de trabalho roubando o tempo para a família, o lazer e a sociedade, destrói a contratação colectiva e só a perversidade de todo o processo de ataque às funções sociais do Estado daria um tratado.

Tudo isto foi denunciado.

Mas, as primeiras palavras do PSD, pela voz da sra. deputada Conceição Ruão não foram sobre isto. A sra. deputada afirmou que qualquer atentado ou ofensa à Assembleia da República são, como toda a gente sabe, crime. E que é inadmissível – solicitando que fosse imediatamente retirado – que alguém envergue uma mensagem – ainda que pequena – insultuosa e ofensiva. A Assembleia da República não poderia admitir que alguém se apresentasse com um crachat com os dizeres «Governo Rua».
Era eu. Um pequeno crachat redondo, negro que diz Governo Rua. Símbolo que me acompanha há quase um ano e que utilizo num determinado casaco que hoje usei.

Ao mesmo tempo que a sra. deputada proferia estas palavras, os seus companheiros gritavam: inadmissível, ofensivo, é uma vergonha!

Mantive-me serena. Não respondi nem retirei o dito crachat. Já não é a primeira vez que tal acontece com o mesmo grupo de pessoas. Da última vez, um deles levou uma foto de um jornal, comparando as caras com os elementos da delegação e identificaram um desses elementos, em plena Comissão, dizendo que não poderia estar ali, que era uma vergonha – por se ter manifestado nas galerias da Assembleia da República.

Sobre o que aconteceu hoje, umas breves notas:

– A sra. deputada não soube distinguir os órgãos, revelando apenas que os deputados do PSD são meros servos do governo e não estão ali cumprindo o seu mandato constitucional, que lhes foi dado pelo povo, enquanto deputados da Assembleia da República. São meras correias de transmissão do Governo.

– Que o crime que se comete contra milhares de trabalhadores é perpetrado deliberadamente e com a consciência tranquila já o sabia, mas o seu assumir despudorado, pondo mesmo um crachat à frente dessa discussão é assustador.

– O estado a que chegámos, quando um dizer na lapela de um casaco é considerado um crime.
E que não restem dúvidas que o será se este gangue tiver oportunidade. Envergar uma mensagem, na chamada casa do povo ou da democracia que rejeita a continuidade do Governo ser considerado pelo PSD crime é de uma ousadia demasiado próxima de ideologias fascistas. Ter opinião diferente, é crime. Para a sra. deputada eu deveria, como tal, estar sujeita a uma pena de prisão que poderá ir até aos 8 anos de prisão – efectiva.

A afirmação de Eduardo Cabrita, presidente da comissão, de que a utilização do crachat era a manifestação legítima e constitucional de uma opinião pôs fim ao monólogo da burguesia.

Mas questiono-me se deverá, mesmo, se dar por findo que uma deputada do PSD acuse alguém de cometer um crime por envergar uma mensagem que afirma Governo Rua!.