O homem do lixo

Nacional

Agora que a capital parece que está a ficar limpinha, limpinha, escrevo sobre o homem do lixo para tentar explicar ao João Miguel Tavares (JMT) em que consiste o trabalho. Neste caso, o trabalho dos homens do lixo, que eram, no meu tempo de miúdo, cantoneiros de limpeza. Hoje devem ser técnico de qualquer coisa. Vem isto a propósito do que disse o rapaz no Governo Sombra – e não, não vou ler o que escreveu hoje no Público.

João Miguel Tavares não percebeu os motivos da greve dos trabalhadores da limpeza, como não percebe as greves, que são um aborrecimento. Os níveis de inteligência de JMT são desconhecidos, mas recordemos que só de uma mente muito, mas mesmo muito retorcida pode sair a ideia de “explicar” a crise a crianças de direita e a crianças de esquerda. E ainda por cima em livro. E ainda por cima com gente que o edita.

Lembro-me de ser miúdo e faziam-se duas coisas para obrigar os miúdos a comer a sopa: ou vinha o polícia ou vinha o homem do lixo. Ora, para além do disparate que é incutir numa criança o medo da polícia – algo que nunca me fizeram, felizmente – eu não podia ter medo do homem do lixo porque o meu pai era um dos homens do lixo.Trabalhou na limpeza durante 25 anos, cerca de seis nos camiões, depois de ter passado por varredor e na limpeza das praias de Matosinhos.

JMT acha estranho que depois da greve total haja uma greve às horas extraordinárias e que estas possam afectar muito a recolha de lixo. Dá, depois, o exemplo de quando foi jornalista (?) no DN e cobriu o despedimento dos trabalhadores de um teatro, cujo horário era das 9 às 17 horas, não esclarecendo se era apenas nos dias úteis, ou se eram pagas horas extraordinárias de acordo com a lei, ou havia compensação pelo trabalho aos fins-de-semana e feriados. Não, que isso não interessa nada. O que conta é malhar nas greves, que são um aborrecimento.

Vamos então tentar explicar ao JMT como funciona, ou funcionava até há uns tempo, quando o meu pai foi aposentado, a limpeza do lixo em Matosinhos.

Os trabalhadores recebiam as horas nocturnas – normal, creio, uma vez que trabalhavam de noite – entre as 21h e as 4 da manhã, tendo o horário sido reduzido gradualmente, quando foram conquistadas as 35 horas de trabalho, até às 3 da manhã. O meu pai só não trabalhava ao domingo à noite.

Para além do salário, os trabalhadores recebiam um prémio de cerca de 100 euros por mês, como forma de compensar o risco e penosidade da profissão, algo que será estranho ao JMT – tanto o risco como a penosidade.

Sobre as horas extraordinárias, JMT não se recordará mas o cálculo do valor do trabalho naquelas horas foi alterado, bem como o trabalho em dias feriado. Talvez por isso, em Matosinhos, a SUMA, empresa privada que ficou com a recolha do lixo, tenha, pela primeira vez, trabalhado no dia 25 de Dezembro. Percebe-se que JMT ignore o detalhe que é não ter a família em casa em datas especiais, sejam elas de qualquer carácter, afinal, escrever aqueles dois livros para crianças deve ter sido feito de manhã cedo, ao acordar estremunhado por mais uma greve ou uma manifestação.

A mim custou não ter o meu pai em casa à noite. Afinal, durante o dia eu estava na escola. Jantávamos cedo para o meu pai ir trabalhar e, não raras vezes, lá vinha a notícia de um camarada que caiu de um camião ou de outro que ficou sem dedos – sim, JMT, os camiões da recolha de lixo têm uma prensa e só assim é possível que cada camião recolha tantas toneladas. Mas isto são tudo detalhes para os JMT do Mundo, que os mercados é que mandam e é preciso flexibilizar, reestruturar e as greves são um enorme aborrecimento para quem só levanta o cu quando está a fazer vénias a quem todos os dias nos rouba e explora.