O punk do bairro negro, um conto de natal

Nacional

Se me perguntassem como é que me convenceram, a mim que tenho vertigens, a trepar ilegalmente a uma torre da ponte 25 de Abril na noite de 25 de Dezembro de 2005, eu teria de admitir que não me lembro. Porque éramos putos, talvez; porque éramos estúpidos, de certeza; porque houve um desafio e ninguém queria parecer cobarde, provavelmente. E porque era a prenda de Natal dele. Só me lembro de andar, pé ante pé, pelo cabo de suspensão acima, a agarrar com muita força, com as duas mãos geladas de suor e de vento, a vida pelos dois fios de aço que acompanham o enorme tirante que suspende o tabuleiro.

À medida que subíamos, o sibilo dos automóveis, carreiros de formigas cada vez mais pequeninas, era engolido pela voz da ponte a ulular como uma baleia fantasmagórica com o vento e as alturas. Só me lembro de Lisboa, despejada a baldes de história nas encostas, a entardecer. Lembro-me das janelas, milhares de espelhos trémulos, rubros, dos últimos estertores do sol oblíquo que se derramava no mar. Lembro-me de pensar, enquanto a noite peneirava as primeiras cinzas, que depressa ficaríamos completamente às escuras a 70 metros de altura. E lembro-me de estar tão completamente borrado de medo, que quis voltar para trás. E só me lembro de olhar para baixo e ver o Pato Donald a comer uma fatia de pizza.

Só me lembro da outra vez, quando ele subiu para cima de uma mesa e anunciou: “Agora só por causa dessa, vão todos apanhar na tromba”. Foi assim que o Flávio informou três neonazis, que estavam a rir-se dele, que fazia muita tenção de bater-lhes. Eu tentava desesperadamente agarrá-lo, levá-lo para longe, (“caga nisso, man”), mas era demasiado tarde: um dos nazos, um gordo gigantesco de crânio rapado e feições endogâmicas, tinha feito um comentário depreciativo sobre o chapéu do Flávio, um boné muito velho, cheio de nódoas, com um bordado do Pato Donald a comer uma fatia de pizza. Bem, eu não ouvi comentário nenhum. Até aos dias de hoje, o Flávio jura a pés juntos que ouviu. Mas não interessa.

— Fujam! Que o pretinho punk vai-nos bater a todos! — os nazis riam à gargalhada e imitavam sons de macaco — Cuidado que se ele tira o boné do pato solta o macaco que há nele.

E eu a segurá-lo:

— (Não faças isso Flávio! Os gajos são mais que nós. Tem calma, puto! Olha lá que o Márcio não está em condições.)

Mas os carecas não sabiam o que tinham acabado de fazer. Não podiam, aliás, saber o que todos os putos da Amadora demasiado bem sabiam: que com o boné do Flávio ninguém gozava. E, para sua desgraça, os boneheads da Frente Nacional também não sabiam que o Flávio, um miúdo negro de metro e sessenta, vestido à punk, cheio de piercings na cara mas com um chapéu do Pato Donald na cabeça, era, nem mais nem menos, que o gajo mais fodido para a porrada do concelho da Amadora, saído das profundezas do bairro mais fodido da respectiva cidade.

A noite tinha começado num bar metal do bairro alto onde os putos bebiam shots a um euro e que, por isso, respondia pelo imaginativo nome de “Bar dos Shots”. À porta, jazia uma enorme poça de vomitado. Quando eu e o Flávio entrámos, já lá estavam, a meio de uma acalorada discussão, o Dino, que era anarquista, straight edge, guitarrista e vegan, e o Márcio, que era só bêbado. O Dino estava aos gritos, a tentar convencer o Márcio que a cena hardcore era incompatível com o consumo de bebidas alcoólicas. O Márcio também gritava, mas só se percebia metade do que dizia. Não tanto por já estar bêbado, mas porque estava sem dentes.

— Então, dread, perdeste a dentadura? — perguntou-lhe o Flávio

Surpreso, o Márcio enfiou os dedos na boca, constatou, aterrorizado, que o Flávio tinha razão e saiu correndo. Entretanto, os três que ficámos, combinámos ir a um concerto de hardcore que havia na outra margem. O problema era, lembrou o Dino, que nessa noite também havia concerto no Disorder, à rua de São Paulo, e o Cais do Sodré estava apinhado de fachos. Éramos todos comunistas, anarquistas, ou qualquer coisa adolescente e suburbana algures entre as duas ideologias.

— Népia, eu não vou dar ganda volta só por causa de nazis — protestou o Flávio

— Não tás a perceber, meu. São os que mataram o Alcindo… — avisou o Dino — Quando apanham pretos é logo fffffttttt fffffttt — e imitou o gesto e o som de uma facada.

— O quê?! Acham que eu tenho medo desses xipas? Agora só por causa dessa vou mesmo lá ao Disorder, que é para beber um copo — o Flávio falava assim.

Nós chamámos-lhe louco, sentenciámos que nós não íamos, dissemos que íamos apanhar o último comboio… Mas o Flávio levantou-se e disse que ia para o Disorder. E nós, que não podíamos deixar o nosso amigo ir sozinho, não tivemos outro remédio que ir atrás dele. À porta, encontrámos o Márcio a remexer no vomitado. Tinha encontrado a dentadura.

O Márcio tinha perdido os dentes incisivos a andar de skate. O pai, que era operário na Sorefame, tinha-se endividado irreparavelmente num crédito da Cofidis para lhe comprar dentes novos. A consciência política dele era essa: os ricos tinham dentes direitos e branquinhos; aos pobres faltam-lhes dentes, aparelhos e sorrisos. Sempre que discutíamos política, ele arranjava forma de desviar a discussão para o tema da saúde dentária, que dominava como ninguém, com um vocabulário e uma eloquência que invariavelmente geravam admiração nos adultos: “Em Cuba, por exemplo, até as próteses são gratuitas e 65 por cento dos jovens cubanos usam aparelho. Já em Portugal, esse número não ultrapassa 10 por cento. Como dizia o famoso dentista húngaro…”.

Conheci o Márcio e o Flávio no mesmo dia, há muitos anos, também pela altura do Natal: os patrões estavam a tentar roubar a maquinaria da Sorefame e os operários tinham montado um acampamento à porta das instalações da Reboleira. Só me lembro do Márcio, ali ao lado do pai, em frente ao bidão onde pedaços de palete ardiam noite dentro, com as labaredas a lamber-lhes as caras endurecidas. Só me lembro de começarmos todos a correr para uma linha férrea que ligava à fábrica desactivada: os patrões não vinham de camião, mas de comboio. Éramos trinta, quarenta pessoas. Homens e mulheres, novos e velhos. Uns metros à frente, distinguiam-se já do manto azul da noite as silhuetas negras da polícia de intervenção, de escudos rumorosos e cassetetes desembainhados a cortar o fulgor dos carris. E só me lembro de, subitamente, vê-los a fugir, sob uma chuvarada de pedras a martelarem ocas nos cascos azuis, e dos putos do Bairro da Estrela de África, a assomarem-se das barracas dos outeiros, pedras brancas nas mãos negras e um boné com o Pato Donald a comer uma fatia de pizza.

Foi tudo lento como uma pantomina encenada: todos os nazis em que o Flávio tocava desmanchavam-se no chão a contorcer-se. E nós ali, pálidos de terror, eu, o Dino e o Márcio, que se estava a gregar outra vez, à espera que o Flávio acabasse. Um toque de cabeça no primeiro, um pontapé no nariz do segundo, uma garrafa na cabeça do terceiro e nem sequer teve de tirar o chapéu. Aquela merda parecia Estalinegrado.

— Como é que é, fascistas filhas da puta? Quem é que quer mais uma prendinha de Natal?

A pergunta era retórica.

Só me lembro do Natal em que fizemos vaquinha e lhe comprámos, em segunda mão na Cash Converters, a prendinha de Natal que ele desejava há anos: a Playstation 1. Não queria a 2, que já havia, porque ele ainda não tinha deixado de querer ter a 1. Só me lembro de vê-lo a chorar de alegria. Ou de tristeza. E só me lembro de ele nos confessar:

— Não tenho guito para vos dar uma prenda, xipas.

— Caga nisso, Flávio…

— Népia, não cago. Mas vou dar-vos uma cena que nunca se vão esquecer.

Foi assim que surgiu a ideia de subir à Ponte. O Flávio conhecia, dos tempos do graffiti nos comboios, um “acesso secreto” ao cabo de suspensão. E ninguém teve coragem de lhe recusar a única prenda que ele nos podia dar.

Só me lembro que era dia 25 de Dezembro e o céu parecia uma enorme folha de alumínio que empalidecia todas as cores. É incrível as coisas que só se vêem quando se anda a pé pela linha do comboio. Só por força de histórias muito mais interessantes do que esta é que sapatos, malas de senhora e torradeiras terminam neste não-lugar onde não devia estar nada nem ninguém.

De vez em quando, o Flávio parava a expedição para apontar orgulhoso para uma parede: “Nojo”, velho heterónimo tatuado, no braço, em casa a alfinetadas e tinta da China e que, passados tantos anos, continuava a cagar centenas de paredes e a incomodar milhões de vizinhos que, de outra forma, nunca saberiam que ele existia porque, na verdade, não queriam saber, como eu mesmo, aliás, que também nunca lhe perguntei do que é que ele tinha “nojo”.

Só me lembro de que os pais dele eram são-tomenses. A mãe lavava as escadas dos prédios da cidade e, todas as noites, deixava um pratinho com comida para ver se convencia a Nossa Senhora a operar um milagre pelo pai do Flávio, que estava acamado desde o acidente na obra. Como era tudo clandestino, o empreiteiro meteu umas notas no bolso do pai do Flávio e aquilo foi como se não tivesse sido. Como se não existisse acidente, nem trabalho nem pai do Flávio.

Se não morassem numa barraca, com que nós gozávamos por ter torneiras viradas para o tecto (o sentido de humor é uma questão de escala), nunca teriam dinheiro para pagar uma renda. Só me lembro que inexplicavelmente, todas as manhãs o pratinho de comida para a Nossa Senhora aparecia vazio, mas apesar da dívida divina acumulada a fiado, o pai do Flávio nunca melhorou. Até que chegou um Natal em que o pai do Flávio morreu e ninguém avisou a Nossa Senhora nem o empreiteiro. E, nessa noite de 24, do pai do Flávio, que agora é que não existia mesmo, já só sobrava uma prenda meticulosamente embrulhada. O Flávio abriu-a em silêncio, esperando um segredo do tamanho da vida, uma derradeira e profunda mensagem, ou uma Playstation 1, que ainda não havia a 2, ou uma herança fabulosa. Mas era um boné, desapropriado para a idade do Flávio, com o Pato Donald a comer uma fatia de pizza.

Só me lembro do cabrão do Pato Donald, a rir-se de mim, ali a mijar-me de medo, a 70 metros de altura, os pés a patinarem no tubo, as mãos a congelar no cabo, a merda da ponte toda a abanar com o vento, e eu ali, a olhar para trás, a dizer, nó na garganta e garrote no estômago, que “quero voltar para baixo, pessoal” e o pato, o cabrão do pato, atrás de mim, imune ao medo, divertidíssimo com aquilo tudo, a devorar fatias de pizza a pingar queijo e a impedir-me de retroceder.

— Putos, a ponte está toda ferrugenta! É só buracos, caralho! — Gritou o Dino, que ia à minha frente.

Conhecíamos o Dino dos concertos de hardcore na Casa Encantada, a okupa da Praça de Espanha. Tocava em quatro bandas de que nós éramos os maiores e possivelmente os únicos fãs, mas apesar da crista, das correntes, dos riffs sujos e dos patches que lhe davam um ar de arlequim, o Dino tinha, como eu, uma vida confortável.

Só me lembro de que os outros putos vinham parar à luta pelo comunismo porque queriam um gimnodesportivo, ou a revogação do Estatuto do Aluno, ou melhores condições materiais e humanas. Mas o Flávio, que também queria essas coisas, tinha ido parar à luta pelo comunismo porque desejava, materialmente, uma grande ruptura com a vida que tinha. Era a ele que interessava mais do que pequenas e grandes reformas. Porque era pobre e filho de pobres, racializado e favelado, ele tinha interesse numa mudança total.

Quando chegámos ao topo, a borracha da noite já apagara na lonjura os contornos dos telhados e as silhuetas das empenas. Só me lembro que se esgotara nesse dia e para sempre em mim o íman das vertigens: lá de cima, o caudal negro do Tejo confundia-se com o resto do universo. A sul, estendia-se aos nossos pés uma larga nuvem, enxundiosa e prenha de chuva.

— Pessoal, isto precisa de ser tudo reparado.

Mas o Flávio estava absorto a admirar a cidade e não percebeu que o Dino continuava a falar da ponte.

— Dread, isto precisa é de uma revolução.

Só me lembro de que, num instante, sem que nada o fizesse esperar, se acenderam todas as luzes da ponte, como se o Flávio tivesse acendido um rastilho de faróis debaixo do mar, que subisse pelos cabos em mil archotes virados contra o céu, que unisse as duas margens e os seus marginais, os da periferia da classe, da história e da cidade, para o rio de que todos dizem violento, e explodisse, no clarão da cidade adormecida que era a nossa prenda, como se ela dele fosse. E só me lembro que havia beleza nisso. Havia beleza.

* ilustração de Renata Candeias

7 Comments

  • Marco Taveira

    17 Dezembro, 2020 às

    Belo texto! Obrigado.

  • Paulo Basílio

    8 Dezembro, 2020 às

    Nestas palavras pulsam vidas, sonhos, desejos, frustrações e desilusões que milhões de seres humanos têm/tiveram! E porque a realidade não se pode apagar como um quadro na escola ou deitar para o lixo, continuamos/continuaremos a lutar para mudar este mundo obsceno e nojento! São os seres humanos que fazem o Natal e o seu espírito, se quiserem… Grato pelas palavras magníficas!

  • Vasco da Gama

    7 Dezembro, 2020 às

    É dessa valia que partilhas que o patrão nunca irá fazer exploração, mais porque desconta como se materializa, mais porque quem a descobre não a vende.

  • António Machado

    7 Dezembro, 2020 às

    Bravo!! 🙂

  • Neto Matos

    7 Dezembro, 2020 às

    Lindo… tal como a luta por um mundo melhor!… Viva o comunismo!…

  • Hugo Lobo

    7 Dezembro, 2020 às

    A História de Natal para 2020. Boa malha, um “Kerouac” português com a luta de classes a correr nas veias e nas palavras. Belo… haja Beleza! Quero ler mais…

  • José Braz

    7 Dezembro, 2020 às

    Muito bom. Obrigado 😉

Comments are closed.