Este post é uma republicação de um texto não assinado que relata uma sexta, de madrugada, na Estação do Rossio, em Lisboa, retirado daqui.
Sexta-feira à noite, estação do Rossio, em Lisboa: mais uma “operação policial para identificação de pessoas suspeitas de entrada e permanência ilegal no país”(…) e “do cometimento de certos crimes.”… Um grande aparato policial junta SEF, PSP e fiscais da CP. Objectivo: controlar os passageiros, nomeadamente imigrantes, enquanto saem das carruagens um a um, verificar a identificação de todos e, já agora, o título de transporte válido. Não é a primeira, não será a última, têm vindo a aumentar. Aliás, nessa noite há, em simultâneo, operações policiais semelhantes em várias zonas da cidade e na periferia. Quantas mais se juntarmos outras cidades e outros dias?
Algumas dezenas de passageiros esperam fora das cancelas. Vários parecem já habituados a que haja alturas em que não se pode apanhar o comboio a horas, já não por não ter bilhete, mas agora por não ter “papéis”… Outros esperam e filmam a cena de dentro das carruagens, mas todas as imagens que a polícia detecta são apagadas no momento da sua identificação e revista, um a um…
Focamo-nos numa personagem que, sozinha, observa e regista. Não veio de comboio, está do lado de fora da cancela, e não no cais onde se aglomeram polícias e fiscais. Um agente aborda-a, “que não pode filmar, que se identifique”. Pergunta porquê, a resposta final é que “se a polícia diz é para acatar”; rapidamente é isolada, algemada e detida. É revistada numa “esquadra de investigação”, sem acesso público, dentro da própria estação. É-lhe retirado o telemóvel e são apagadas as poucas imagens que recolheu. É depois mudada para outra esquadra, onde passará as próximas horas – quase seis, o limite máximo previsto na lei. Pelo meio, é ainda levada à sede da Policia Judiciária, para uma “resenha de identificação mais completa”. Novo aparato: vários agentes, uma carrinha, para contornar uma única esquina. É apenas para a impressionar, a ela e aos companheiros que entretanto se juntaram à porta? Finalmente, é libertada, mas fica de se apresentar no tribunal na segunda-feira seguinte. Mas, de que é, afinal, acusada?
Noutra ponta da estação, outros tiveram uma situação semelhante mas com um desfecho bem diferente. Poderia ser, também, porque foram abordados por um polícia mais bem-disposto, mas uma melhor explicação é que eram vários. Não estavam sozinhos. E, assim, o primeiro polícia foi chamando também os seus colegas, subindo a hierarquia, até quase se igualar o número de intervenientes de cada lado da discussão. Das trocas de argumentos sobre “o delicado equilíbrio entre a eficácia das operações policiais e o respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos”, sobre “o confronto entre a autoridade e a liberdade” se consegue depreender ao menos parte da outra história.
Primeiro eram as filmagens. Mas filmar não é, em si, ilegal, qual é o problema? É complicado: “porque é em espaço público, porque o espaço não é totalmente público, porque…”, “não é que seja explicitamente proibido filmar operações policiais, mas os agentes individualmente não gostam de ser filmados…”. Bom, aqui o que interessa é o conjunto da operação, notoriamente publica, não nos focamos em nenhum agente, também não gostamos de ser focados em filmagens, e sabemos que não é legal filmarem-nos sem a nossa autorização. Note-se, no entanto, que a nossa personagem não poderá agora ser acusada de nada disto, já que ainda que houvesse algum crime, a prova – as imagens no telemóvel – já foi apagada. (1)
A conversa segue agora para a identificação. Mas por que pretendia a polícia identificar estas pessoas? Porque estavam a filmar”, afinal não serve como já vimos… hm… será no âmbito da operação, procuram suspeitos de quê? Também “não lhe podemos dizer o objecto da operação…”, mais tarde ou mais cedo chega o “Porque é suspeito não se querer identificar!” É? Parece, apenas abuso de autoridade – se perguntas, se questionas, se não acatas ordens sem as tentares entender e enquadrar legalmente, és suspeito. Este caso, teria eventualmente “circunstâncias excepcionais”: estavam a identificar toda a gente que passava na estação, mas não foi explicado porquê… A nossa personagem não tinha consigo o cartão de cidadão, mas tinha companheiros ali mesmo na estação que a poderiam identificar, só que foi impedida de os contactar. (2)
Passa-se assim, sem razão, ao último passo: a ida à esquadra escondida, a revista, a detenção. É inclusive algemada e claro que fala. Protesta. A acusação seguinte, afinal a única neste caso, torna-se a de “crime de resistência e coacção sobre funcionário”. Disso terá de se defender, então. Que perguntou, que questionou o enquadramento das ordens, que resistiu portanto a actuações arbitrárias, mas não a uma autoridade explicada e entendida. Que, claro, uma pessoa sozinha desarmada não coage um polícia armado, e menos numa operação que junta dezenas deles. Que é apenas natural resistir a uma detenção arbitrária. Que o direito de resistência está previsto nas leis, a Constituição diz que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias” e até “de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”
Se estivéssemos ainda na outra discussão, poderíamos agora responder que “não, não é só que nós não gostamos de fardas; é que em geral não confiamos na polícia; e mais desconfiaremos, e mais gente desconfiará, com certeza, com a generalização destes abusos de autoridade”. “Que, assim, mais importante se torna que haja companheiros atentos sempre que há uma operação policial, que a registem ou tentem intervir para evitar que haja abusos, pessoas detidas sem justificação.”
Quantos trabalhadores chegaram mais tarde ao descanso ou, por outro lado, ao trabalho nocturno? Quantos imigrantes foram assediados e assustados? Quantos outros terão sido detidos nessa noite? “O SEF deteve quatro cidadãos estrangeiros por permanência ilegal e notificou doze para abandonarem o território nacional. Foi ainda detectado um indivíduo na posse de arma ilegal. No âmbito desta acção foram identificados cerca de 400 cidadãos, dos quais 150 estrangeiros.” Quanto tempo passaram nessa esquadra sem acesso público, sem poder comunicar com ninguém, provavelmente sem saber bem o que lhes aconteceu, sem saber o que poderia vir a acontecer ainda? Para que servem estas operações? Para criar insegurança à maioria das pessoas, para nos habituar ao controlo constante, para nos fazer aceitar regras arbitrárias por forma a “não arranjar problemas”.
Esta não foi a primeira, nem será a última, destas operações. Acontecem regularmente na periferia e, cada vez mais, no centro da cidade. Visam principalmente imigrantes, mais sujeitos à chantagem dos papéis, e é muitas vezes juntas ao controlo dos bilhetes dos transportes públicos. É urgente questionar e resistir, registar e divulgar, não deixar ninguém sozinho, e organizarmo-nos para impedir o avanço da perseguição aos imigrantes, do medo e do autoritarismo. Propomo-nos a acompanhar e relatar este tipo de operações, a denunciar os seus propósitos de controlo e repressão, e a juntar as ferramentas para evitar os abusos sistemáticos. Ouvimos e lemos vários relatos, sabemos haver muitos mais, juntemo-nos para perceber melhor os seus efeitos.
(1) O que a lei diz é: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando (…) a imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente” (Art 79º-2 do Código Civil); Mas, por outro lado, incorre em pena quem “contra vontade filmar ou fotografar outra pessoa” (Art 199º-2 do Código de Processo Penal).
(2) O que a lei diz, no artigo 250º do Código de Processo Penal, é: “Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas”, devendo “comunicar ao suspeito as circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação”. “Na impossibilidade de identificação imediata no local, os órgãos de polícia criminal podem conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e obrigá-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas. Será sempre facultada ao identificando a possibilidade de contactar com pessoa da sua confiança.”. Segundo o mesmo artigo 250º: o “Reconhecimento da sua identidade por uma pessoa identificada (…) que garanta a veracidade dos dados pessoais indicados (…)”, serviria também, e é apenas em último caso, que se aplica a ida à esquadra. Quanto aos meios acrescidos de identificação, os tais realizados na PJ, “são sempre reduzidos a auto e as provas de identificação dele constantes são destruídas na presença do identificando, a seu pedido, se a suspeita não se confirmar.”