Ode a Odessa

Internacional

Hesitei em chamar a isto uma ode. Mas que raio! Saramago escreveu evangelhos que não o eram, memoriais que não o eram, ensaios que não o eram. Porque não posso eu escrever uma ode que não o é?

Sempre que em algum lugar do mundo eclode a violência, dispara o contador de vítimas e é do interesse dos órgãos de comunicação de massas, ditos de referência, construir uma história conveniente, surgem por toda a parte, feito cogumelos, grandes especialistas na matéria que opinam com grandes certezas sobre os acontecimentos. A qualquer um causa grande espanto e admiração a desenvoltura com que algumas caras conhecidas, a quem antes nunca tínhamos escutado uma frase sobre o assunto, de repente emitirem todo um discurso elaborado onde não faltam nomes de cidades e de protagonistas.

Não admira que, em boa-fé, se tome o que dizem por verdade, até porque parece haver coerência entre o que uns e outros dizem. Como não sou pessoa de fé e já vivi situações em que comprovo que as certezas mediatizadas não passam de conversa fiada, faço como o Casimiro da canção, tenho muito cuidado com as imitações.

Eu, não especialista, me confesso. Quero escrever sobre o que se passa na Ucrânia mas não sou profunda conhecedora da história, não sei de cor o perímetro do país, há cidades de que ouvi falar pela primeira vez nos últimos meses e que nem sei exactamente como é que os seus nomes devem ser pronunciados. Mas tenho a meu favor o materialismo histórico e dialético.

Quero escrever sobre isto porque abate-se sobre mim um pesado manto de impotência que desejo romper. Tomar consciência da criminosa cumplicidade de uma parte significativa dos media e nada fazer provoca-me verdadeiro mal-estar físico. Tenho úlceras no estômago porque não consigo denunciar, de forma audível para todos, o que se passa na Palestina, no Sahara Ocidental, na Líbia, na Síria, na Venezuela, e agora, na Ucrânia. Nazim Hikmet, o poeta turco, dizia ao médico da prisão que a sua angina de peito não se devia à nicotina, nem à prisão, nem à arteriosclerose, era por causa dos males dos povos. A mim, esses males, alojam-se-me no estômago.

É este o mesmo Hikmet que escreveu:

“Das canções de embalar que as mães cantam
Até às notícias lidas pelo locutor
Vencer a mentira que percorre o mundo
No coração, no livro, na rua.
Que felicidade enorme a de compreender
Compreender o que passa e o que chega.”

E noutro lado do mundo Brecht escreveu:

“As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.”

Ainda que por egoísmo sanitário, mas por enfermidade altruísta, quero escrever sobre Odessa.

No turbilhão de “notícias” surreais sobre o massacre retenho três constantes: a fragmentação da informação – um incêndio, mortos, conflito – sem relação entre si; a troca entre as vítimas e os carrascos; a distinção entre ucranianos e pró-russos (porque não todos ucranianos? Ou porque não uns pró-UE e outros ucranianos?)

Para esta última, João Alferes Gonçalves, avança, num brilhante artigo, uma explicação:

“Pessoalmente, acredito que há mais órfãos da União Soviética nas redacções dos media do que no Partido Comunista Português. A maior parte dos autores de comentários que se referem ao governo russo actual ainda não conseguiram superar os reflexos condicionados anticomunistas e tendem a identificar Putin com o poder soviético, desaparecido há um quarto de século. Esquecem, ou ignoram, que Putin foi escolhido para suceder a Yeltsin, quando esta marioneta deixou de ser útil, e que o mais firme e consistente adversário de Putin na Rússia é o partido comunista.”

E di-lo a propósito de uma aberração publicada pelo Correio da Manhã que, entre outras pérolas, afirma peremptoriamente: “incêndio foi causado por milícias pró-russas fortemente armadas” e de um editorial do Público que tem por título: “Nas malhas da guerra civil ucraniana”.

José Goulão refere mesmo que se trata de uma limpeza étnica. Diz ele:

“Em terminologia ocidental, aquilo que é escumalha para os ucranianos puros, fascistas e governantes, são os “pró-russos”, os “separatistas”, palavras recitadas como se fossem insultos. Quase ninguém ousa pronunciar – há dignas e honrosas excepções – os termos que qualificam esses resistentes: antifascistas, federalistas, pessoas que não querem ser cidadãos de segunda no seu país por falarem uma outra língua e terem eventualmente uma religião diferente da seguida pela elite de Kiev.”

Diz ainda que:

“A coberto dela, os Estados Unidos e a NATO continuam a reforçar o cerco junto às fronteiras europeias da Rússia, fazendo da Ucrânia um membro informal mas efectivo da Aliança Atlântica.”

Não é de espantar portanto que John McCain tenha dito a uma televisão ucraniana que a proposta apresentada ao senado por Republicanos, de uma ajuda militar à Ucrânia, no valor de 100 milhões de dólares, será certamente aprovada. Mas o que lemos e ouvimos nos media dominantes é apenas que os russos têm estacionados 40 mil soldados junto às fronteiras com a Ucrânia e que há soldados russos infiltrados nos grupos “rebeldes”. Não nos dizem que agentes da CIA e do FBI aconselham os golpistas de Kiev, nem que Jay Carney , porta-voz da Casa Branca, confirmou a visita do director da CIA, John Brennan, à Ucrânia e a sua reunião com o “governo interino”, nem que frequentemente se ouvem vozes norte-americanas entre as milícias pró-Maiden, nem que os tumultos que originaram o golpe de estado foram provocados por “manifestantes” a soldo (e que vieram depois reclamar o quinhão que lhes tinham prometido), nem que desde a primeira hora, em que o rastilho da divisão foi aceso pela mão da UE e dos EUA, aqueles que criticaram e se opuseram aos manifestantes da praça Maiden foram violentamente atacados, nem que foram ocupadas e destruídas sedes do Partido Comunista e torturados dirigentes seus (que convém lembrar, eram também oposição ao governo de Ianukovich). Os jornais provavelmente não dirão que hoje mesmo foram banidos os comunistas do Parlamento por condenarem as acções do governo e exigirem um inquérito sobre o massacre de Odessa. Nos jornais já foi esquecido que os mortos durante os protestos em Kiev foram provocados por snipers contratados pelos golpistas. E também esqueceram que as negociações foram recusadas pela dita “oposição”, incluindo a convocação de eleições antecipadas e a cedência a todas as reivindicações iniciais. O que estava em causa era a desestabilização do país.

Para além da provocação e tentativa de isolamento da Rússia e para além da limpeza étnica, há um outro objectivo para o incremento da guerra. Poucos dias a seguir ao golpe, o governo interino faz um acordo com o FMI. 18 mil milhões de dólares mais 8 mil milhões dos EUA e 8 mil milhões da UE de empréstimo à Ucrânia. Estes gerarão juros agiotas que os ucranianos dura e longamente terão de pagar. Havendo conflito armado as despesas serão gigantescas. É o velho negócio da guerra associado ao, tão em voga, negócio da dívida. Um negócio que, segundo o documentário Dividocracia, intensifica-se cada vez mais como nova forma de colonialismo. Os estados ficam dependentes, perdem soberania, deixam de poder emancipar-se.

A história não se repete, mas os acontecimentos assemelham-se. O que está a passar hoje na Ucrânia tem muito de ascensão e clima de guerra nazi. Tal como hoje na Ucrânia, também na Alemanha, em 1933, os comunistas foram banidos do Reischtag. Foram presos em massa. Depois foram os outros. Tal como no dia 2 de Maio, foi prática dos nazis durante a guerra, nos territórios da União Soviética ocupada (incluindo a Ucrânia) queimarem edifícios com centenas de pessoas dentro. As imagens e os relatos do massacre de Odessa lembraram-me cenas do filme soviético de 1985, Vêm e Vê (Idi i smotri), um brutal retrato da Bielorússia durante a ocupação alemã.

Enquanto eram queimadas vivas quase meia centena de pessoas, estava a Portugal o homem que se diz ser o mais feliz do mundo, o monge budista Matthieu Ricard. Veio para realizar duas conferências (uma em Lisboa e outra no Porto) promovidas pela Coca-Cola e sob o tema “Altruísmo e Felicidade”. É uma pena não ter ido assistir. Parece-me uma impossibilidade que neste mundo se possa ser altruísta e ao mesmo tempo feliz.

“Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
Sente a tristeza e a dor das pessoas.”