Os da fila de trás

Nacional

Quando eu era miúda e se juntava a tropa toda que não gostava do «Ramiro» porque era «repetente» (sim, estou a citar o Bruno Aleixo), era fácil para a maioria dos miúdos rir e gozar sem querer saber o porquê.

A minha turma tinha essencialmente filhos de operários de fábricas de calçado e cortiça. Sabíamos sempre quem eram os corticeiros porque normalmente faltavam-lhes dedos. Alguns eram filhos de médicos, advogados e professores (cerca de 7%), e uns poucos (ainda menos) de trabalhadores dos serviços (comércio, etc). A professora gostava que os 7% se sentassem sempre na fila da frente. Seguiam-se-lhes os dos serviços, e, por ordem, os do calçado e depois os da cortiça – eram os mais pobres.

Ao quadro, chamava sempre os da última fila. Normalmente os «repetentes», os que tinham mais dificuldades na aprendizagem, não andavam na «mestra» (era assim que chamávamos aos ATL’s), não tinham acompanhamento no seu estudo. Erravam os exercícios. Eram violentamente espancados pela Dona Alice (que, infelizmente nunca mais vi, teria muito que conversar com ela), incluindo bater com a cabeça na parede forrada a cortiça para os nossos desenhos.

Era demasiado fácil, naquela turma ceder à tentação e chamá-los burros ou repetentes. Mas não, não o fazíamos. Eu furava o esquema e sentava-me sempre na fila da frente para sussurrar as respostas a quem ia ao quadro. E se as não soubesse, os que tinham esse lugar por direito atribuído pela Dona Alice, diziam-mas e eu arranjava maneira de transmitir. Ficávamos sempre aterrorizados quando os das filas de trás eram chamados ao quadro. Nenhum de nós queria nada daquilo. Só queríamos aprender. E, na verdade, muitas vezes eles sabiam as respostas. Mas o medo que lhes era instigado era de tal ordem que nem conseguiam falar. Mas sabiam-nas. Porque apesar de tudo, estudavam, estavam atentos mesmo a ouvir pior do que todos os outros e queriam aprender. Perguntavam. Questionavam. E hoje são profissionais de excelência.

Mas quando alguém entrava na nossa sala, era uma turma bonita. A face visível era a dos que podiam (felizmente) comprar roupa e mochilas novas, livros e cadernos e não tinham que usar os dos irmãos os que lhes eram dados (se fossem). Era muito bonita.

Por que raio estou a contar isto?

Liguem a televisão. Vejam como, de repente, em todos os noticiários a «esquerda» aparece com uma imagem moderna, limpa, intelectualizada, preocupada, com propostas avançadas e arrojadas.

Abram o jornal e vejam como são bonitas as fotos, os sorrisos, a cosmética comunicacional.

E depois, vem a direita, sempre muito bem composta.

E depois, vêm os comunistas. Imagens agastadas, críticas que tantas vezes nem correspondem à verdade, agregados a propostas da tal esquerda moderna que as apresentou, sem nunca se referir que os comunistas já defendiam essas coisas há décadas (alargamento da licença de maternidade e paternidade, aumento do respectivo subsídio, criminalização dos recibos verdes, fim da precariedade na Administração Pública, criação de uma licença de prematuridade, fim das propinas, investimento no cinema português, …..). E, claro, os chavões de sempre, agora usados à «esquerda» e à «direita»: moralistas, aliam-se à direita, conservadores e o que mais houver.

E, se acaso um comunista ousar criticar uma posição moderna, pois será ele o sectário, o impossível, o intolerante e autoritário.

É que, meus caros, eu uso óculos Prada e defendo um salário mínimo nacional de 600 euros (que acho pouco) e 35 horas de trabalho para todos. Vou a museus, gosto de arte, adoro música, escrevo sobre cinema. Não sou um estereótipo. Mas o que se critica são os óculos de sol. Mesmo que os tenha comprado com horas e horas e horas de trabalho, não interessa. Nunca poderei ter a imagem da «esquerda moderna». A essa sim, cabe-lhe a roupagem.

E cabe, caberá sempre essa roupagem à social democracia. Porque por mais que falem dos direitos dos trabalhadores, não se lhes deixa de encontrar sempre a hostilidade aos comunistas. Que a comunicação social adora, empola, e, como na escola, consegue o efeito de massas. São os «repetentes». Ficam no fundo da fila. Porque o que eles sabem, não interessa que se saiba. O que eles dizem, convém não ser ouvido. Muito menos escrito e lido. Porque as suas ideias moveram e movem massas. Organizam trabalhadores. Criam sindicatos. Dizem que assim não pode ser. E transformam. Transformam o sonho em vida.

E enquanto a imprensa inventa a «esquerda moderna», a Holly Golightly do fabuloso Breakfast at Tiffany’s, a que é encantadora, mas afinal, vazia, os da fila de trás não ficam nem vão ficar parados. E era tão bonito perceber que, de facto, o que é preciso é a realidade de quem trabalha a falar por si (porque está a falar por todos os que trabalham) finalmente começa a brotar quando se liga uma televisão ou se abre um jornal… Mas isso, cabe-nos aos da fila de trás, boca a boca, papel na mão, conversa no café, no tribunal a defender o trabalhador, no bairro a defender melhores condições de vida, na Assembleia da República a apresentar propostas que melhorem, efectivamente, a vida dos portugueses ao invés de se transformarem em posts de facebook ou tweets ridículos de tão bafientos que são.

Cá estaremos.