Será o glifosato uma questão fraturante?

Nacional

Ontem, na Assembleia da República – com os votos favoráveis do PS, BE, PEV e PAN e votos contra do PSD, CDS-PP e PCP  foi chumbada uma proposta do Bloco de Esquerda que pretendia proibir «a aplicação de produtos contendo glifosato em zonas urbanas, zonas de lazer e vias de comunicação». O BE classificou o voto do PCP como uma acto sectário (ver texto de Nelson Peralta), alegando que o PCP alterou a sua posição, tendo apenas votado contra por se tratar de uma proposta do Bloco. A comunicação social prestou-se à charanga com títulos como «Estalou o verniz entre BE e PCP?» (Jornal i) e «Glifosato divide PCP e BE» (TSF).Para uma leitura mais sóbria da situação há que separar questões distintas, umas políticas (quais as posições do BE e PCP sobre o glifosato?; qual a natureza da proposta do BE?; como justificou o PCP o seu voto?) e outras científicas (o que é o glifosato?; que evidências existem que faça mal à saúde?).

Tomemos primeiro as questões políticas. Peralta justifica a sua acusação de sectarismo no facto do PCP, ao nível autárquico, já ter aprovado medidas semelhantes à proposta pelo BE na AR; e ainda recentemente se ter abstido quando o BE apresentou na AR uma recomendação sobre a consideração global da interdição do glifosato. Os votos autárquicos e a alteração de sentido de voto na AR não implica uma alteração de posição. A posição do PCP foi claramente enunciada pelo deputado João Ramos e concretizada na «Proposta de recomendação ao Governo a promoção de medidas para melhorar o controlo dos fitofármacos e promover a sua aplicação de forma sustentável».

O voto do PCP (e não a posição) na AR mudou porque a proposta do BE também mudou, como é notório pelos títulos das duas propostas, nomeadamente de uma recomendação para uma proibição (restrita às zonas urbanas). Segundo nota do PCP, o Bloco tinha conhecimento do sentido de voto desfavorável do PCP a recente proposta, sabia consequentemente que a rejeição era provável, e também que poderia fazer a proposta baixar à comissão, sem votação, onde a discussão pudesse prosseguir na especialidade. Optou por levar a proposta a votos, e depois acusar o PCP pelo seu chumbo, acusação – essa sim – pejada de carga divisionista. É mais fácil e sonoro acusar de PCP de sectarismo, do que explicar posições, diferendos e seus fundamentos. (E cabe perguntar, para que serve esse tipo de acusações? Sobretudo sabendo que a Comunicação Social papa e regurgita explosivamente qualquer migalha anti-PCP.)

A posição do PCP tem em conta importantes distinções, como o uso do glifosato em zonas urbanas e de lazer (de dimensões mais limitadas e com contacto estreito com as populações), nas vias de comunicação e o seu uso agrícola; e tem em conta a necessidade de ponderar alternativas, considerando a sua viabilidade económica (em particular na prática agrícola), mas também a saúde pública, por forma a encontrarem-se produtos menos nocivos e de menor risco. Sendo a situação diferenciada, é pois natural que tenham havido votos diferentes por parte do PCP. O conteúdo das propostas e o seu enquadramento é relevante.

Claro que todo este cuidado e ponderação poderá parecer despropositado se o glifosato for um químico comprovadamente perigoso para a saúde. Entramos então noutro domínio, o científico. O tom da discussão mudou quando, em Março de 2015, a Agência Internacional para Pesquisa sobre Cancro (IARC) da Organização Mundial de Saúde (OMS) reclassificou o glifosato como “2A provavelmente cancerígeno para humanos“. Tratando-se de uma organização idónea rapidamente se espalhou a leitura desta reclassificação como implicando a existência de evidências definitivas da ligação entre o fitofármaco e cancro em humanos. Mas como explica o grupo Sense about Science, o IARC não faz uma avaliação do risco, mas apenas afere o potencial de um agente poder causar cancro, isto é não tem em conta a probabilidade e grau de exposição real das pessoas e logo o risco efectivo, formas de contacto. Como comparação, o IARC também classifica sumo de toranja, frango frito, ou trabalhar turnos noturno ou como barbeiro como sendo 2A; e classifica óleo de bébé, contraceptivos orais, bebidas alcoólicas e a luz do sol como categoria 1, “existem evidências convincentes de serem cancerígenos”. Mas a dose importa. A maça foi classificada como «2B, possivelmente cancerígena», por possuir formaldeído, um químico tóxico para humanos, mas este está presente em 22 partes por milhão, isto é numa concentração demasiado baixa para ser tóxico.

Assim estamos ainda longe de poder concluir com firmeza que o glifosato provoca cancro, e não devemos tomar a classificação do IARC como alarme (ver opinião de alguns cientistas à classificação). Alguns reguladores afirmam que o risco é baixo. O Instituto Federal Alemão para a Avaliação dos Riscos emitiu uma avaliação em April do ano passado que concluiu que não existem evidências de propriedades cancerígenas ou mutagénicas do glifosato. Como fruto da análise concluiu porém que existe evidência convincente que a toxicidade de alguns herbicidas contendo glifosato são tóxicos como resultado de co-formulantes. Ou seja, é possível que o caminho deva ser a eliminação destes elementos e não a proibição do glifosato. Mais recentemente a OMS/FAO emitiu novo relatório em que concluiu que os níveis normais de exposição ao glifosato não são cancerígenos.

Existem obviamente interesses económicos muito interessados em continuar e intensificar o uso de glifosato, mas a existência de tais interesses não constituem prova científica. O IARC é uma instituição idónea, o que não impede que os seus resultados sejam empolados pela comunicação social (incluindo alguma imprensa de divulgação científica) atraída por cabeçalhos alarmantes e sem cuidado em explicar o miolo mais massudo. (Nem as instituições das NU são isentas de reacções alarmistas. Recordo o pânico lançado com a gripe suína em 2009, responsável por uma corrida aos stocks de tamiflu e pelos dispensadores de gel desinfectante que se encontram vazios um pouco por todo o lado.)

Com esta breve discussão não pretendo de qualquer forma negar a possibilidade de que o glifosato possa fazer mal à saúde humana e que a sua eliminação seja desejável. Mas espero ter contribuído para demonstrar que a ciência sobre o glifosato não é consensual, e que cabe ainda realizar estudos para aferir o risco real. Podemos claro então perguntar: devemos estudar e depois decidir o que fazer, ou parar já e depois confirmar com estudos, ou seja é o risco suficientemente alto para invocar o «princípio da precaução». Esse seria um ponto de discussão útil. Do que me é dado aferir, não existem razões concretas para precipitações, que nos poderiam levar a substituir o glifosato por alternativas menos práticas, viáveis, ou mesmo piores para a saúde. Podemos e devemos, antes de instituir uma proibição global realizar estudos adicionais e ter uma discussão concreta sobre formas alternativas.

* Autor Convidado
André Levy