Os pobres e a guerra

Nacional

Foi criada, nos últimos tempos, uma histeria mediática e política, que começou na UE e se alastrou a Portugal, em torno da necessidade do rearmamento da União Europeia. Para isso, as escrupulosas regras da UE dos limites aos défices e dívidas nacionais deixarão de estar em vigor. Note-se que, com países como Portugal a enfrentarem uma gravíssima crise na habitação e no Serviço Nacional de Saúde, essas regras nunca foram levantadas, ou foi, sequer, solicitado pelos governos fazê-lo. No entanto, para a indústria da guerra, vai valer tudo.

“Melhor que o negócio da saúde
só o das armas”

Quando Isabel Vaz, presidente do grupo Luz Saúde, disse que “melhor que o negócio da saúde, só o das armas”, não estava a brincar. De acordo com o SIPRI, as 100 maiores empresas de armamento viram os seus lucros aumentarem 4,2% em 2023, para 623 mil milhões de euros, ao passo que os dos hospitais privados valem cerca de 4 mil milhões. Não é de estranhar, por isso, a vontade de os governos reféns dos grupos económicos darem um novo impulso a indústrias de milhares de milhões. Em Portugal, continuamos a viver com as urgências, particularmente de obstetrícia, fechadas em determinados dias, uma situação gravíssima que já se tornou banal, assumida como inevitável. Como é evidente, a UE não prevê qualquer alívio das regras orçamentais para o investimento necessário no SNS. Porque é o segundo melhor negócio para privados, a seguir ao armamento.

Os russos de Vladivostok a Lisboa
em cima de máquinas de lavar roupa voadoras

Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, vivemos uma montanha russa – deixem-me aproveitar enquanto a expressão não é banida – de propaganda; nos dias pares, o exército russo está a colapsar, usa material de guerra da II Guerra Mundial, chips de eletrodomésticos para fazer funcionar a sua máquina de guerra, um exército frágil e sem formação adequada que avança apenas alguns metros insignificantes nos territórios ucranianos; nos dias ímpares, a Rússia é um poderoso adversário militar, com o material mais avançado do planeta e prepara-se para invadir toda a Europa e construir um busto de Putin no topo da Torre dos Clérigos.

O discurso da guerra iminente

Há anos que este discurso é propagandeado pelos media, com comentadores, muitos deles sem qualquer conhecimento sobre Relações Internacionais, Política Internacional ou Geopolítica, a acenarem com a necessidade da preparação para a guerra. Alguma esquerda em Portugal, europeísta e defensora do aprofundamento da integração europeia, que mais não é do que a linha histórica dos Verdes alemães, defende este discurso. Encurralados por Trump na sua admiração pela NATO, os que à esquerda salivam por um rearmamento da UE – como se algumas das maiores empresas de fabrico e venda de armamento não fossem europeias – cedem a um discurso que não é novo e foi muito popular no caminho para a I Guerra Mundial. Há um fetiche de superioridade europeia neste segmento de esquerda de que a direita gosta. Foi assim com os Verdes alemães no desmantelamento da ex-Jugoslávia ou na invasão da Síria pela NATO, que até teve o dedinho de Rui Tavares.

Tudo a vestir os camuflados

Há duas questões a reter nesta febre armamentista, a primeira, tem a ver com o financiamento, que foi levemente abordada atrás, mas é fácil de perceber. Não há nenhum plano da UE que permita ter défices superiores aos decretados pelos mecanismos para enfrentar a crise da habitação ou do SNS. A esquerda de saliva pelo rearmamento da UE, deixando de molho a NATO, é cúmplice do que vier a suceder na Alemanha, por exemplo, enorme beneficiária desta urgência que atirará milhões para a miséria e servirá de guarda-chuva a todos os ataques às liberdades individuais e de organização dos cidadãos. Veja-se a ascensão da extrema-direita por toda a UE e a repressão de que são alvo os manifestantes contra o genocídio na Palestina que, de acordo com o Tavares, ainda não é bem um genocídio. Para a ideologia dominante, do comentariado à esquerda europeísta, é imperativo que estejamos armados até aos dentes. E é quase como se a História não nos ensinasse o que aconteceu sempre que tal foi feito, particularmente no que diz respeito à Alemanha.

Os pobres que paguem as guerras

Cada euro que for investido na indústria da guerra é um euro a mais para as empresas de armamento alemãs e francesas e um euro a menos nos sistemas de saúde, educação, segurança social europeus. Cada euro acima das regras que foram definidas pela própria UE relativo ao défice, terá um custo ainda maior. Esta febre da corrida aos armamentos terá impacto, acima de tudo, nos mais pobres e ainda mais nos países periféricos. Os anos em que os nossos governantes se gabavam de impor austeridade à nossa vida para serem os bons alunos da UE acabaram. Agora, não há garrote que pare o rufar dos tambores em Bruxelas e nos seus idiotas úteis espalhados pela UE. De uma coisa podemos todos ter a certeza: não são os filhos, os irmãos, os pais, os amigos deles que, se se confirmar o seu desejo, irão morrer no campo de batalha. Eles ficarão nos seus gabinetes e nos seus programas de televisão a explicar-nos porque é que os nossos terão de morrer.

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