Palavras do ano

Nacional

O André Albuquerque, neste mesmo blogue, chamava à atenção para a recriação da linguagem como forma de mascaramento do sistema e respectivas práticas políticas. Exemplificava com alguns conceitos. E é verdade. É uma terrível verdade. A utilização das palavras está no centro da batalha ideológica, ou, melhor dizendo, no centro da construção e da desconstrução das concepções do mundo, da humanidade, da sociedade, da história, da política. Os exemplos do André são, para muitos de nós, facilmente decifráveis (uns mais do que outros). O que não será tão facilmente entendível, e o André de certo modo abordava-o, é a desdramatização ou desvalorização do uso das palavras também como forma de manipulação das mentalidades. Ainda há poucos dias

A crónica semanal de Ricardo Araújo Pereira de anteontem, ia, no seu habitual humor crítico, também no sentido de apontar esta desvalorização ideológica, e não me refiro à adulteração de significados como o óbvio “irrevogável” de Paulo Portas de que ele também fala, até porque, neste caso, trata-se da falta à palavra e não da palavra em falta, isto é; a palavra não foi proferida num sentido diminuído, o cumprimento dela é que foi adulterado. Nada de novo, estamos a falar de um invertebrado (não querendo ofender os invertebrados). Refiro-me à nomeação condicionada dos linguistas da Porto Editora para a “palavra do ano”. Diz ele:

“Imagino que a perplexidade do leitor seja tão grande como a minha. Uma lista das palavras mais utilizadas este ano da qual não consta, por exemplo, o vocábulo “gatunos”, que credibilidade tem? Para não falar, é claro, nas palavras que estes linguistas, por vil racismo semântico, deixam sistematicamente de fora. Palavras que, na sua maior parte, estão dicionarizadas e têm uma utilização muito mais frequente do que qualquer das finalistas. Alguém ouviu, no decorrer deste ano, desabafos do género: “Estes bandidos do governo levaram-me o 13.º mês. Filhos duma grande coadopção”? Ou: “Já é a segunda talhada que me dão na reforma. Se fossem mas era todos para o piropo”? Com quem convivem estes linguistas?”

Piadinhas à parte, o que aqui interessa reter é que a escolha destas palavras teve como critério a mediatização de determinadas questões e não o que ocupa a mente da maior parte dos portugueses. Aquilo que terá sido mais verbalizado foi preterido em benefício da escolha, que atende cada vez menos ao valor-notícia, das redacções dos jornais, rádios e televisões.

Claro que há palavras que, independentemente da sua origem etimológica, e em função da linguagem específica que as utiliza têm mais do que um sentido. Utilizar as palavras com sentidos fora de contexto é também adulterar a verdade – e disto falava o André. Conhecer todos os sentidos e a origem etimológica das palavras é adquirir ou deter uma ferramenta preciosa no questionamento crítico de todas as mensagens com que somos confrontados.

O campo da legislação e do direito, porque é um dos pilares de organização política, é pródigo neste “jogo”. A título de exemplo: progressivamente e tendencialmente são termos que não significam o mesmo. A redacção do artigo 74º da Constituição da República Portuguesa é clara quando refere: “estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”, no entanto, nos anos de 1992/93, quando foi imposto um aumento das propinas no ensino Superior de cerca de 4.700%, o Tribunal Constitucional admitiu a constitucionalidade da medida baseando-se no significado da palavra tendencial e não da palavra progressivo. Qualquer um que se lembre das aulas de Matemática no ensino básico, sabe que a tendência é apenas uma direcção, uma inclinação, isto é; tender a uma coisa não significa chegar à coisa, pode até registar inversões. Uma progressão é, pelo contrário, uma direcção continua. O Tribunal Constitucional optou por desvalorizar o sentido preciso e responsabilizador do advérbio progressivamente.

A, que já vai sendo clássica, confusão deliberada entre trabalhador e colaborador não é, como podemos, pela influência da ideologia dominante, ser levados a crer, uma elevação do trabalhador à condição do patrão, mas antes uma desvalorização do conceito de trabalhador. Etimologicamente a palavra trabalho significa tripalium, um instrumento romano de tortura feito com três paus. Trabalhar é portanto um verbo que nasce da ideia de sofrimento a ele associado. Em Física aprendemos que trabalho é o produto da força exercida sobre um corpo. Assim, substituir trabalhador por colaborador é, sobretudo, destituir de sofrimento e de capacidade transformadora aquele que produz.

Mais recentemente uma outra palavra tem vivido, na boca dos governantes que a pronunciam, mirabolantes piruetas interpretativas: a palavra avaliar. A mentira pode não ter uma perna assim tão curta, mas o conhecimento tem certamente braços longos. Sentimo-nos ofendidos quando sabemos a verdade e o nosso interlocutor insiste na mentira: é isso que se passa com os professores e todos os portugueses mais vigilantes. Nuno Crato, o governo e os partidos que sustentam esta maioria insistem na ideia de que a “prova de avaliação de conhecimentos e capacidades” a ser aplicada aos professores contratados (agora apenas os que têm 5 ou menos anos de serviço) “foi criada com o objectivo de melhorar o sistema de ensino, através da dignificação da carreira de docente e dos professores”.

Qualquer professor conhece os vários significados da palavra avaliar. Sabe que no contexto educacional avaliar é aferir as competências e os conhecimentos adquiridos. Nesse contexto não pode existir selecção (embora a ideologia dominante insista nesse sentido anti-pedagógico), trata-se de diagnosticar. Progredir e ficar retido não significam incluir e excluir. Crato quer fazer crer aos portugueses que é disso que se trata. No entanto, é claro para todos que a redução do número de professores nas escolas vai levar ao aprofundamento da exclusão desses profissionais do sistema. Qualquer professor sabe que a avaliação de Crato vai no sentido mercantil da palavra: determinar o valor de, reputar. E esse é, claramente, um sentido de selecção.

Qualquer professor sabe que não houve nenhum diagnóstico que justificasse esta medida para “melhorar o sistema de ensino”. Qualquer professor sabe que a dignificação da carreira docente ou de qualquer outra coisa não é alcançada com este conceito de avaliação e sim com a valorização do trabalho.

Para palavra do ano tenho várias hipóteses, as que mais devem andar na cabeça dos portugueses: desemprego, desigualdade, pobreza. Mas creio que talvez fosse mais adequado eleger palavras no âmbito dos conceitos que são a égide de quem nos governa: hipocrisia, paternalismo, mentira, exploração.

*cartoon de Quino