«Eu disse a Estaline que não construísse o Palácio dos Sovietes. O edifício mais alto do mundo seria alemão. Mas ele não quis saber e pôs-se a construí-lo. Se é guerra que quer é guerra que terá»

Internacional

Falar sobre Hitler, sobre a II Guerra Mundial, sobre as mortes de milhões de russos, homossexuais, judeus, ciganos é ainda, na memória e representação colectiva, um assunto sempre abordado com o maior dos cuidados para que não se ofenda a concepção pessoal e, muito menos, a história recente.

A verdade é que este cuidado que faz com que as palavras sejam cuidadosamente pensadas, principalmente quando a mensagem sobre o assunto é pública, encerra, em parte, o defeito de que essa mesma história é sempre contada pelos vencedores. Daí que venha, ela mesma, impregnada de conceitos que já foram deturpados e enviesados.

Os dias em que mais aprendi sobre a II Grande Guerra foram dias em que pude visitar o museu da Mãe Pátria em Kiev. Em que pela primeira vez soube da sua existência. Entrei nos aviões (recuperados e mantidos em exposição) em que me foram explicados todos os dispositivos utilizados por alemães e por russos, onde vi vídeos que relatavam várias operações ao pormenor. Vi um Katiuska mesmo à minha frente e destroços de guerra dos soldados. Cartas das mães aos filhos, uniformes nazis, pijamas às riscas, o mapeamento dos campos de concentração na Ucrânia (o país com mais campos de concentração na história), as manobras no Dniepre, módulos que recriavam o interior de navios, vários filmes informativos dos anos 40.

Em Birkenau e Auschwitz vi as paredes que falam por si. Antes de entrar no campo Auschwitz I, onde quase ninguém se coíbe das fotos em grupo debaixo do famoso portão arbeit macht frei (as fotos «nós em Auschwitz no facebook), vi um documentário russo sobre a libertação dos campos pelo Exército Vermelho. Durante a visita de dois dias foi a única vez que ouvi falar disto. Porque a história, também ali, foi contada parcialmente. Felizmente, os documentos históricos não mentem ainda que me tenham valido um grito da guia polaca que se irritou quando perguntei, perante uma foto americana datada de 42 em que estavam identificados os campos de extermínio – os mesmos que nós pisávamos – por que motivo os EUA, França ou Inglaterra não tinham libertado os campos, mas os russos, que tinham as tropas em terra e mais baixas do que os judeus que ali morreram. Há coisas que, ainda hoje, não podem ser questionadas. Mesmo que, nesse dia, estivessem sobreviventes do campo e sobreviventes do regimento que os libertou. E como se emocionava uma militar russa ao contar esses dias.

Nos últimos anos, este cuidado tem sido, no cinema, ultrapassado por umas realizações arrojadas sobre a II Guerra Mundial. A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich (“Der Untergang”), de Oliver Hirschbiegel será talvez o filme mais impressionante pela honestidade crua ao humanizar Hitler, Eva Braun, o casal Goebbels, demonstrando que não é porque um homem é a «personificação do mal» que uma das maiores atrocidades foi cometida. Desconstrói a ideia de que é uma pessoa – porque é má, insana ou não foi suficientemente amada pelos pais – se lembra e dizima milhares de seres humanos e quer governar o mundo. E muitos se chocam com esta humanização – no sentido não de atribuir sentimentos de generosidade e amor mas no sentido de os representar como pessoas – mas é precisamente esta humanização que permite perceber toda a natureza política antes e no pós guerra, que lhe dá a verdadeira dimensão histórica e factual da Grande Guerra. Um filme que não teve qualquer preconceito em mostrar que foram os russos que determinaram o fim da guerra e não os americanos (como eu aprendi na escola) o que revela também o sentido de construir um documento que mexa com a tal representação colectiva e coloque a quem o vê uma série de questões sobre a natureza do conflito, mais do que a natureza de um homem.

Também o Inglorious Basterds, de Tarantino e Eli Roth, num registo muito mais leve e provocatório se atreve a reescrever a história. Confesso que, pessoalmente, é um registo demasiado leve acabar-se com uma guerra incendiando um cinema, mas apenas me revela que como qualquer outra pessoa, a permeabilidade das memórias grupais me assenta.

Resta-me Moloch, de Sokurov, 1999. Um filme verdadeiramente espantoso (num registo único e às vezes um pouco cansativo pelos planos parados) pela forma como aborda Hitler e o seu círculo mais próximo. Não se limita a humanizar. Caricatura todas as características tidas como conhecidas de Hitler, do casal Goebbels, de Eva Braun. Caricatura do ponto de vista físico, que, só por si, altera por completo a ideia que temos de cada um deles sem necessidade de mais, mas caricatura também os seus comportamentos, os seus discursos, a sua forma de estar no plano privado. É quase um provocação extrema ao público, quase um «Foram estes os responsáveis??? Estes???» que de uma forma simples corta com os tabus e as ideias de que tudo dependeu de um maluquinho que não gostava de judeus (curiosamente nem este assunto ou qualquer outro assunto político foi abordado no filme).

«Eu disse a Estaline que não construísse o Palácio dos Sovietes. O edifício mais alto do mundo seria alemão. Mas ele não quis saber e pôs-se a construí-lo. Se é guerra que quer é guerra que terá».

Nada nesta frase é simples, é diminuto, é menor. É precisamente um ponto de partida para que a representação do poder, da história política desta Guerra sejam encaradas na sua globalidade, em todos os seus eixos de análise, deixando as personificações como a resposta e buscando toda a complexidade de um dos acontecimentos mais abjectos, mais absurdos, mais letais da história da humanidade: o nazi-fascismo.