“Paz social”

Nacional

O cavalheiro que ocupa a relevante posição de vice-primeiro ministro de Portugal afirma, gozão, que a “paz social” é uma singularidade do chamado “ajustamento” português. Afirma-o aliás no mesmo dia em que um estudo dedicado ao tema do consumo vem apontar um cenário absolutamente evidente para quem vive o dia-a-dia do Portugal popular: “depois de pagarem todas as contas, 39% dos portugueses ficam sem dinheiro para o resto do mês“. Conheço-o (ao cenário) na primeira pessoa.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante) não ignora que a política de que é protagonista principal mata, espezinha, humilha e descarta seres humanos a bem de uma ideia de sociedade que se aproxima perigosamente o Chile de Pinochet. Naturalmente que desconhece em absoluto o que é ter fome – é coisa acerca da qual poderá quanto muito especular – mas não ignora que esta não apenas existe como alastra. Não ignora mas despreza.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante) não ignora que para a maioria deixou de ser possível optar entre as coisas da vida. Em Portugal trabalha-se para pagar sítio onde morar, comida para sobreviver e formas de chegar ao trabalho (quem o tem, naturalmente) para não perder o sustento, ilustração perfeita do que escreveram Marx e Engels no seu Manifesto a propósito da forma como a burguesia vai garantindo às camadas trabalhadoras assalariadas as condições da sua sobrevivência: “(…) para se poder oprimir uma classe, têm de lhe ser asseguradas condições em que possa pelo menos ir arrastando a sua existência servil“.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante) não ignora que em Portugal se deixa de comprar medicamentos para matar a fome. Ou que há adultos desfalecendo sem comida no estômago para dar migalhas aos filhos. Não ignora que há centenas de milhares de pessoas empurradas para a economia subterrânea, gente sem rendimento nem apoio algum, que se vê não raras vezes forçada a trabalhar nas condições mais desumanas para garantir comida na mesa. Não ignora mas despreza.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante), incapaz de sair à rua sem um magote de seguranças e apenas para as deslocações absolutamente necessárias, não ignora que não há paz alguma nem nas ruas nem nas empresas, onde se luta duramente contra um cenário de retrocesso civilizacional sem precedentes e é por isso que passa a vida a elogiar a “paz social” que deseja mas não encontra. Não ignora mas despreza.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante) também não ignora que o que está em curso é uma operação de transferência de rendimentos do bolso de quem trabalha para os cofres de quem especula. O dinheiro não é queimado nem destruído em trituradora de papel. Se sai de um bolso – do nosso – entre noutro – o deles, os agiotas, banqueiros, capitalistas e especuladores -, e é verdadeiramente esse o ponto nodal do roubo em curso. Não ignora mas despreza.

O vice-primeiro ministro do Portugal ocupado (pelos interesses de que é orgulhoso representante) não ignora que o assalto ao “pote” está aí, bem lançado, mas que não se dá sem denúncia nem sem resistência. O seu empenho na demonstração da “paz social” portuguesa, “singularidade” que apresenta ao país como elemento central do sucesso do saque, não é apenas retórica desenvergonhada, é estratégia de intencional negação da evidência que qualquer pessoa decente e lúcida pode verificar olhando a realidade em seu torno (quando não a vive na primeira pessoa): a “paz social” de que fala o governo não existe.

Por fim, Portas não ignora que o sistema cava a sua própria sepultura, e que serão os trabalhadores unidos a enterrá-lo quando o momento chegar. E que este se aproxima, demore aquilo que demorar. Portas queima os últimos cartuxos desta sua miserável existência política. Se um dia a ressuscitará só a história o poderá revelar. Nós cá estaremos para não o permitir.