Paz social não é armistício, é rendição.

Nacional

Passam setenta e cinco anos sobre a libertação dos prisioneiros do campo de concentração nazi de Auschwitz. Foi quando o Exército Vermelho, vitorioso e caminhando sobre o Ocidente pela Polónia abriu os portões de Auschwitz que os sete mil e quinhentos últimos sobreviventes viram que o seu futuro não seria o crematório. Não sem que antes mais de um milhão de prisioneiros ali terem sido assassinados das formas mais bárbaras pelo capitalismo nazista.

Os que fazem os filmes e a nova historiografia que apagam ou escondem o papel da União Soviética na derrota dos nazis na Segunda Grande Guerra são os mesmos que dão por adquirido o capitalismo como fase final da História da Humanidade. Afinal de contas, o seu objectivo de manter e agravar o sistema de exploração capitalista mais depressa passará pela reconstituição dos fascismos do que pelo abrandamento da exploração capitalista. A acumulação capitalista não é compatível com a regressão dos seus poderes. Qualquer recuo por parte da classe dominante – em função das lutas das classes dominadas – é necessariamente transitório pois que, segundo as leis do capitalismo, não existe “capitalismo de manutenção”, o “capitalismo ou acumula ou morre”. Isto significa que a ideia de desenvolvimento “nórdico”, “ocidental”, “europeu”, com todas as suas nuances não passa do embuste ideológico que a classe dominante monta para conter a força torrencial do proletariado.

O próprio “eurocomunismo” e outras degenerescências do projecto comunista são apenas expressões dessa visão enviesada da luta de classes que aceita a ideia de que é possível, partindo das conquistas operárias no contexto da democracia burguesa, construir pedra sobre pedra uma democracia que dê resposta aos problemas dos trabalhadores através de alterações sucessivas na correlação de forças política e institucional em favor dos trabalhadores. Há um erro basal na construção de tal “teoria”: a de que em algum momento histórico – independentemente da sua duração – a classe dominante se permitiria ser espoliada dos seus privilégios sem retaliação. Retaliação ideológica, cultural, económica e militar. Tal modelo de desenvolvimento do capitalismo como etapa que se extinguirá pela mera acção de forças progressistas com propostas e projectos, mesmo que acompanhada de uma luta de rua, confronta-se com o inevitável muro da realidade que nos demonstra sem margem para dúvidas que não é possível colocar o edifício legislativo e estatal burguês ao serviço de qualquer outra classe, independentemente do número de remendos que sobre ele, com mais ou menos frequência, lhe consigamos fazer.

“Nada é mais parecido com um fascista do que um burguês assustado” resume bem o que se pode esperar de um avanço tímido das forças progressistas. Ao mesmo tempo, o compromisso de forças progressistas com o funcionamento do capitalismo, com a governabilidade e estabilidade de um sistema que é a instabilidade da vida dos trabalhadores no médio e no longo prazo redunda no envolvimento dessas forças com esse sistema a um ponto em que se torna cada vez mais imperceptível para as massas a distinção política e ideológica entre o que deveriam ser dois pólos essencialmente antagónicos.

Afirmar isto não significa negar a tese marxista de que cada sistema contém elementos e características dos sistemas que o precedem e do sistema que o sucederá. O capitalismo contém características do feudalismo, como contém características do socialismo. Mas isso não significa que reformas, remendos mais ou menos pontuais ou abrangentes sobre o sistema actual, o aproximem do que o sucederá pelo simples facto de que quanto mais obrigada for a burguesia a recuar sem que lhe seja retirado o poder político e económico, mais agressiva esta se torna enquanto classe e mais instrumentos e mecanismos colocará ao serviço dos seus objectivos.

O primeiro objectivo dos comunistas não pode, pois, ser outro, senão o da revolução socialista, sendo que outras intenções intermédias não se podem constituir como fins mas como instrumentos para que sejam criadas condições para a concretização do primeiro. A fusão entre o que é táctico e o que é estratégico torna-se fatal quando as tarefas objectivas dos comunistas se orientam para ilusões eleitoralistas ou para a reivindicação para si mesmos de melhorias tímidas e pontuais que resultam da variável correlação de forças das instituições burguesas.

A agressividade da classe dominante é hoje sentida em Portugal, por exemplo, precisamente na medida em que são introduzidas melhorias pela acção, por exemplo do PCP e do BE, no quadro da legislação nacional. Todavia, essas melhorias não deixam de ser acompanhadas por um sentido geral negativo – ainda que tendencial -, de consolidação da força dos monopólios, de desvio de recursos para o centro económico da União Europeia, para a banca privada, e por um recrudescimento das formas mais reaccionárias da política de direita, incluindo dentro do próprio estado. O racismo, o individualismo, a discriminação com base no sexo, a cultura do ódio, o medo e a sensação de insegurança são amplamente difundidas pelos órgãos da burguesia, criando um enorme reservatório de população reaccionária que aguarda o recipiente certo no plano político para ser organizado e criar uma resposta fascista à disputa do poder, contando com o apoio da classe dominante em todos os aspectos. Esse risco é ampliado pela segmentação das lutas, segmentação para a qual muitos dos que se dizem de “esquerda” contribuem, mas para a qual contribui também a incapacidade de incorporação, por falta de atracção ou prioridade do movimento operário, dessas lutas com as suas questões próprias na luta mais ampla pela revolução.

Estamos na fase da passagem do capitalismo ao socialismo.

Estarmos capazes de operar essa mudança é fundamental para o sucesso dessa tarefa histórica que só ao proletariado cabe. E não cabe a nenhuma franja do proletariado, cabe à sua totalidade, ainda que dirigidos pela sua vanguarda de classe. Não existirá uma ruptura funda com o sistema capitalista enquanto da própria luta de classe estiverem alheados os negros da periferia, os despojados de habitação na cidade, os jovens atirados para o ensino profissional desqualificado, as mães despedidas, as mulheres oprimidas, os homossexuais e transexuais reprimidos, os deficientes excluídos, enquanto a política nacional estiver centrada nos assuntos institucionais da república espectáculo e se os comunistas não utilizarem os seus palcos parlamentares para denunciar e desmascarar a ingovernabilidade do capitalismo, sob a batuta de PS seja, com D ou sem D.

6 Comments

  • Jose

    29 Janeiro, 2020 às

    Li o resto do texto e la percebi que, tudo o que possa arregimentar-se para ser pastoreado pela sua vanguarda de classe (negros da periferia…..), serve para montar o tal sistema de referência do que quer que seja.

    • Nunes

      29 Janeiro, 2020 às

      Zé psicopata!

    • Nunes

      30 Janeiro, 2020 às

      «Confesso que só li até aqui; há que tomar fôlego…

      …quando um projecto, todo ele uma degenerescência do humanismo…

      …e da racionalidade é erigido em padrão do que quer que seja!»

      […]

      «Li o resto do texto…

      …e la percebi que…

      …tudo[…]

  • catarro

    28 Janeiro, 2020 às

    Miguel, grande prosa carago!

  • Jose

    28 Janeiro, 2020 às

    «degenerescências do projecto comunista»
    Confesso que só li até aqui; há que tomar fôlego, quando um projecto, todo ele uma degenerescência do humanismo e da racionalidade é erigido em padrão do que quer que seja!

    • Nunes

      29 Janeiro, 2020 às

      Zé rabicho!

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