Por falar em futebol e racismo: os «camisas negras» do Rio

Nacional

Muito embora no que a futebol brasileiro diga respeito toda a atenção mediática esteja presentemente centrada no Flamengo de Jorge Jesus, nenhum outro clube dirá tanto a Portugal e aos portugueses como o Clube de Regatas Vasco da Gama, do Rio de Janeiro. Contudo, não é o facto de ter sido fundado e patrocinado por portugueses que nos leva propriamente a coloca-lo aqui em evidência. É que ontem, na Bolívia, numa partida a contar para a copa sul-americana de futebol, o guarda-redes suplente do Vasco foi também ele vítima de insultos racistas. A questão é que, neste caso concreto, tendo em conta o peso simbólico da camisola que o atleta enverga, a situação assume uma dimensão duplamente grave: pelo crime em si, e pelo facto de ter sido cometido precisamente contra um clube histórico do combate ao racismo e à desigualdade.

De facto, e com toda a certeza não por mero acaso, uma grande parte dos portugueses saberá dessas ligações simbólicas que unem o Vasco da Gama a Portugal. É o clube dos fundadores portugueses, dos emigrantes lusos no Rio, da Cruz de Cristo, do nome de um dos heróis da pátria, etc. Mas serão certamente menos os que alguma vez ouviram falar da «resposta histórica» do clube e da forma como este se tornou, na década de 20 do século passado, num baluarte da luta contra a exclusão social e racial, em particular numa fase histórica muito marcada pela grande ascensão internacional dos nacionalismos e fascismos.

O Vasco da Gama começou por ser um clube de vocação naval. Dedicou-se nos primeiros anos aos desportos náuticos e só mais tarde decidiu abrir a sua secção de futebol. Mesmo sem ter estádio próprio, registou-se uma ascensão meteórica da sua equipa pelos escalões de futebol brasileiros. Em pouco tempo, o Vasco intrometeu-se na luta dos grandes «times» cariocas – Flamengo, Botafogo ou Fluminense – e começou a somar vitórias, títulos e glória. Que factor particular terá feito a diferença?

Acontecia então a verdadeira magia do desporto, a magia do futebol puro, de braço dado com as lutas sociais mais prementes e urgentes da sociedade de então. Enquanto os ditos «grandes» do Rio eram clubes das elites e compostos por atletas brancos, o Vasco havia recrutado os seus atletas nos bairros negros e operários dos subúrbios da cidade maravilhosa. Analfabetos, pobres, descamisados, mas «muito bons de bola», como os próprios hoje afirmam, talvez o mundo não tivesse conhecido Pelé se aquele Vasco da Gama não tivesse descoberto o caminho desportivo para o mérito e o valor desses pobres e segregados. O Vasco da Gama foi o primeiro clube do Brasil a ser campeão com negros.

Uma das primeiras equipas do CRVG na década de 20. @crvgfotoshistoricas e página Vascomunistas no Facebook

Claro que os ditos «grandes» não poderiam então aceitar tamanha humilhação e afronta social. Decidiram abandonar a competição e criar uma liga à parte, criando um regulamento que impedia a inscrição de clubes sem estádio e com jogadores «sem profissão ou de profissão duvidosa». Era, como bem se percebe, uma forma de depurar o desporto dos «empecilhos» sociais e raciais, nomeadamente excluindo o Clube de Regatas Vasco da Gama. Contudo, a popularidade dos «camisas negras» era cada vez maior, e os ditos «grandes» não puderam deixar de convidar os vascaínos para a sua nova liga insistindo para que aceitassem as suas regras. É então que se dá a famosa «resposta histórica» vascaína: de maneira formal e já com uma postura altiva e firme, o Vasco assume-se fiel aos seus princípios e recusa afastar os seus jogadores negros e desempregados, auto-excluindo-se dessa nova competição. O Vasco já não era um dos «grandes», pois tornara-se um «gigante», mantendo até hoje esse apelido de «gigante da colina».

A «mais bonita história do futebol» continuou depois a escrever-se. Numa inaudita campanha popular de angariação de fundos edificou-se, por fim, o mítico estádio São Januário, que era só, na altura da sua inauguração, o maior estádio de futebol da américa latina. O Vasco é ainda hoje um dos poucos clubes cariocas que se podem orgulhar de ter um estádio próprio.

Ontem, quando um bando de energúmenos resolveu insultar um negro com dichotes racistas, não o fazia apenas àquele atleta em particular. Fazia-o a essa grande instituição e grande símbolo anti-racista que foi e é o CR Vasco da Gama, lembrando-nos apenas, a todos nós, uma vez mais, o quão graves e nefastos são os tempos que vivemos. E também nós teremos de, com toda a firmeza, dar a nossa resposta histórica e de forma colectiva. Não passarão!

1 Comment

  • Jose

    22 Fevereiro, 2020 às

    Gostei!

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