A estranha dualidade de como se continua a publicar ciência no mundo parece escapar à atenção da maioria da comunidade que teima em não deixar para trás um sistema arquitectado para o controlo e para o lucro. Mesmo havendo duras críticas por parte de muitos investigadores, alguns com peso mediático por grandes feitos na ciência premiados até pelos maiores galardões das suas áreas como o Nobel ou a medalha Fields, e as suas insistências em recusar publicar nas editoras que olham para a edição e publicação científica como um negócio, a discussão está longe de ter a atenção que deveria ter, principalmente por parte dos intervenientes públicos responsáveis pelo financiamento da ciência e tecnologia em geral.
Por ocasião da sua eleição para a presidência da Science Europe (ES), a Nature (editora internacional de ciência) publicou uma pequena entrevista ao Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) onde os assuntos de financiamento e acesso a publicações foram postos em cima da mesa. Sem margem para dúvida, palavras especialmente fortes quando na boca de um cientista, Miguel Seabra afirma que o acesso livre a publicações é essencial não só para o avanço da ciência em si mas também para o progresso da humanidade. Sem surpresa surge logo de seguida a argumentação para que tudo fique como está, o entrevistado, ainda com a boca cheia da palavra humanidade, lembra-se rapidamente que a questão está longe de ser trivial, que deve ser abordada de forma flexível e que o Conselho de Direcção está a planear reunir com os editores para evitar posições arrogantes! Na sequência das perguntas sobre o assunto, voltamos a ler que o acesso livre a dados e publicações é uma óptima ideia… mas em teoria claro! Porque na prática, o entrevistado apressa-se a referir que há questões de qualidade que são difíceis e que há custos que ninguém parece estar interessado em suportar!
De políticos bem intencionados que só não seguem as “óptimas ideias” em prol “do progresso da humanidade” porque afinal as coisas não são bem como queremos já nós temos a nossa conta. Dos que sabem ser arrogantes para quem deviam servir mas se movem com pés de lã com os interesses instalados ainda mais!
No trabalho dos investigadores a publicação de artigos em conferências, jornais e revistas da especialidade é uma consequência natural e mesmo essencial. Esta serve a comunidade da área e o próprio método científico. Uma publicação ampla e disponível é o segredo de uma investigação prolífica e de excelência, pois os grandes resultados são fruto de uma acumulação de trabalho e produção colectiva, e da possibilidade de verificação minuciosa e generalizada, que é a essência do método científico. Neste processo vital há então uma dualidade, que é a necessidade de ter “à mão” a literatura das áreas em que se investiga e a possibilidade de publicar o trabalho realizado no local adequado.
A maioria das publicações consideradas com elevado impacto, estando o grau de impacto relacionado com o número de citações que cada artigo tem por outros artigos, pertencem a um número muito reduzido de editoras geridas por privados e orientadas para o lucro. Estas editoras vivem sobre um modelo de negócio que tenho dificuldade em encontrar mesmo numa economia que vive da maximização do lucro, que se baseia em cobrar aos autores, produtores dos trabalhos a serem publicados, editar e organizar o sistema de revisão por pares e depois cobrar a todos os que queiram ler o produto final. Para que fique uma ideia, publicar num jornal científico custa facilmente milhares de euros ao autor e uma assinatura do mesmo jornal para uma faculdade pode custar centenas de milhares de euros. Ora não há como perder dinheiro, principalmente se tivermos em conta, que a parte mais exaustiva do processo, o sistema de revisão por pares, não é remunerada! Sim, a mesma comunidade que paga para publicar e para ler os seus próprios artigos está habituada a rever os artigos dos colegas a pedido das tais editoras, aliás num acto banal da vida de investigador que nunca vi ninguém questionar e que de bom grado consideram trabalho pro bono que é incorporado na cadeia de lucro das editoras! De fora fica o trabalho de edição, impressão (estando a maioria das cópias em papel a desaparecer substituídas pelas consultas em formatos digitais) e manutenção de arquivos.
A finalidade da publicação científica como finalidade do lucro tem vários aspectos que devem ser considerados, traduzindo-se alguns em perversões aos princípios por que se devem pautar a boa ciência. A acumulação de tantas publicações em tão poucos editores, o dinheiro que movimentam, os interesses que angariam e o tipo de incentivo que significam são os principais factores de corrupção científica a que hoje se assiste. É conhecido e mesmo aceite com naturalidade que os super-jornais de uma determinada área (para dar exemplos: Nature, Cell e Science) dominam as áreas e grupos que conseguem financiamento, público e privado, pela simples selecção do tipo de artigos que publicam. Publicar num destes jornais pode ser a diferença entre um orçamento chorudo, equipamento de laboratório e bolsas de investigação (escravos?) ou a decisão do “esgotamento” de uma linha de investigação. Ao usar-se os factores de impacto dos jornais para a avaliação da ciência, do que é bom e mau, promissor ou esgotado, relevante ou sem interesse, a financiar ou a matar põe-se nas mãos destes poucos a decisão do que nos importa conhecer como sociedade, desde as áreas mais fundamentais às mais “aplicadas” no nosso dia a dia.
Esta realidade produz um sistema de incentivo que tem a capacidade de deformar a ciência em si, não só o que é publicado, como a criação de “bolhas” de investigação em áreas que os editores classificam como “sexy” ou de alta visibilidade e que por isso vão funcionar como chamariz à venda de mais subscrições milionárias! O contrário é o efeito que tem em áreas que não estão na mira dos critérios editoriais mais relevantes, deixando no vazio linhas de investigação inteiras. Tem sido, também, tema de debate que os montantes pagos para publicar, ou noutros casos para inscrições em conferências, são motivos de pressão para aceitação de artigos, mesmo que muitas vezes tendam a ter revisões no sentido da não publicação na avaliação pelos pares, pois existe a necessidade de existir um limite mínimo para garantir que as publicações ou conferências são lucrativas. Muitos cientistas têm comparado este sistema de incentivos como os utilizados na banca e instituições financeiras, que levaram à especulação e outros crimes financeiros extremamente prejudiciais a toda a sociedade.
Uma contracorrente, alvo de constantes ataques com fundamentos duvidosos, são jornais e repositórios de dados de acesso aberto ou livre (dependendo da tradução!). Sem entrar no detalhe destes modelos estas editoras dividem-se nas que têm um acesso dourado (gold), baseado em publicações livres, ou verde (green), baseado em repositórios de acesso a artigos publicados em outras publicações. Ambos os modelos tem uma variedade considerável de modelos de financiamento que vão desde o mecenato privado a fundos públicos e nenhum é garantia que não existe algum tipo de contrapartida financeira para o autor e/ou leitor.
Por discutir seriamente está a necessidade de uma intervenção pública e alargada (porque não internacional?) na constituição de editoras verdadeiramente livres e arquivos de gestão e acesso público. Desta forma, e provavelmente só desta forma, existe a garantia de que o conhecimento obtido e financiado pelas sociedades retorna a estas. Eliminando a necessidade do lucro pelo caminho, as editoras estariam realmente centradas no seu papel fundamental para o desenvolvimento científico e progresso da humanidade.
Os custos, como se apressa o entrevistado a revelar como entrave, serão certamente menores neste modelo público, como aliás acontece sempre que se acaba com os interesses privados num serviço! As contas são simples, basta pensar que todos os investigadores de financiamento público usam dinheiros públicos para pagar as publicações ou entrar nas conferências indispensáveis ao seu trabalho. E todas as instituições, que se queiram pautar pela qualidade e excelência na investigação, têm de ter condições para o trabalho em questão, que passa aqui pelo acesso a várias publicações de preços exorbitantes! Os fundos utilizados nestes dois, multiplicados pelas várias instituições e países superariam em muito o orçamento necessário a editoras públicas de qualidade sem precedentes! Aposto que o remanescente ainda daria para financiar muitos programas públicos de investigação que hoje morrem lentamente com a desculpa de falta de verbas a encobrir as opções políticas desastrosas que se tomam. No entanto percebo o problema do Presidente da ES e FCT, há muito que a maioria dos investigadores que tutela deixou de ter dinheiro para publicar! Há muito também que se deixaram de pagar as assinaturas das publicações essenciais ao trabalho científico, atirando as Universidades portuguesas para mais uma era de trevas, culpando-se o comportamento ganancioso das magnificas editoras que fizeram disparar os preços das subscrições quando os orçamentos científicos começaram a apertar e o número de publicações a decair! Editores estes que agora vão ter na mesa cordeirinhos para negociar aquilo que há muito não faz sentido…
Agora falando de outra publicação científica, aquela que deveria ser de serviço público, que é a comunicação do conhecimento às massas que se faz na comunicação social, TV, jornais, rádio, etc., e ocupa um espaço desprezável, ao contrário de pseudo ciências que figuram centrais em imensos espaços, sejam noticiosos ou de entretenimento! Como seria a sociedade se o horóscopo fosse substituído por um espaço igual sobre astronomia? Poderia começar com o facto de os signos que hoje vemos celebridades interpretar nem corresponderem sequer às constelações que a Elíptica (linha imaginária da trajectória aparente do Sol quando observado da Terra) atravessa nos dias de hoje…
* Autor Convidado
Tiago Domingues