Quando o Cavaco morrer, uma história de amor

Nacional

Não estamos aqui para discutir se há amor à primeira vista, mas poesia à primeira vista certamente haverá, tanto que ele, que não acreditava nas belas-letras, e muito menos na poesia, deu por si, ao primeiro relance, a ponderar dizer-lhe que se imaginava a fazer com ela uma longíssima e perigosa viagem e que quando ela já não aguentasse mais, podia contar com ele, não para salvá-la, mas simplesmente para que ela soubesse, de ciência certa, que podia contar com ele. Felizmente, não disse nada disto. É fácil, claro, fazer poesia para uma mulher bonita, mas esta é a última coisa fácil nesta história.

Ele disse-lhe que gostava de punk e ela achou que isso era muito século XX. Ela escrevia tudo em post-its e ele nem sequer tinha uma agenda. Ela disse-lhe que era muito ansiosa, ele calmamente respondeu «ok» e ela disse que não gostava de pessoas que respondiam «ok». Apesar disso, ela gostava de andar descalça e ele andava sempre de botas. Ela disse-lhe que ele fazia demasiadas perguntas e ele achou que ela tinha respostas para tudo. Ela disse-lhe que era comunista e ele, que dizia sempre que não acreditava ideologias, muito menos em utopias, de repente imaginou-se com ela.

Ela ia a 120, num monólogo furioso sobre os bebés do cavaquismo, os nascidos entre 85 e 95 que, assegurava ela, compunham uma geração condenada à regressão civilizacional: viver pior do que os pais acreditando nessa maldição como uma inevitabilidade.

— A nossa geração — explicava ela — cresceu com a privatização da banca e não conhece outro tipo de existência laboral para além da precariedade.

Falava ininterruptamente, com os olhos distantes, poisados nas empenas gretadas da cidade, onde resplandeciam agora as últimas centelhas do sol de Inverno. E ele julgava poder vê-la, ali, a convalescer de mortes passadas, a dar ordens ao coração em escombros, como um desamparo ou um fantasma excomungado, deserdado e deportado de assombrações antigas.

— O Cavaco deu-nos o betão dos subúrbios e tirou-nos as empresas estratégicas do Estado. Pior, o Cavaco convenceu-nos a todos de que não há vida para além deste neoliberalismo de poliéster.

Ele tentava acompanhar o seu passo rápido pelos grandes salões das conversas sobre história e política, mas sentia-se como um pardal preso num centro comercial a esvoaçar contra as vidradas, e nem sequer podia dizer «ok».

— Sabes porque é que a nossa geração não dá tanto valor ao 25 de Abril como a dos nossos pais? — perguntou-lhe, mas não esperou pela resposta dele — Porque já não conhecemos esse país em que não havia propinas, em que a electricidade era pública e os trabalhadores não podiam ser despedidos por dá-cá-aquela-palha. Quem viveu a vida toda em crise económica não distingue a diferença da austeridade. Por isso digo-te, preferia que em Novembro de 75 tivéssemos ido para a guerra civil.

Ele ia tomando nota de tudo isto: de como eram os olhos dela, redondos e escuros como o mar à noite; de como se vestia neblinosa e indiferente, calças verdes e t-shirt cinzenta; de como estacava o passo às vezes para melhor articular uma ideia. E subitamente tomou consciência de como era também precária a sua oportunidade. Era necessário dizer-lhe qualquer coisa. Qualquer coisa que lhe dissesse, por outras palavras, este silogismo categórico: o comunismo não é amor, mas amar-te é sempre comunismo, porque é uma partilha desinteressada,  generosa e livre.

Então, encheu os pulmões de céu e de poalha de chuva que já descia fina e anunciou:

— Está a chover.

Quando entraram, ele sentiu que, durante uma fracção de segundo, o bar inteiro ficara em silêncio a admirar a grande beleza dela. A música, de resto, estava demasiado alta e ele teve de gritar para lhe dizer que ela estava muito bonita. Implacável, desnecessariamente cruel, ela riu-se muito e só quando parou de rir-se é que respondeu qualquer coisa que ele não compreendeu. Ainda assim, ele achou que o sorriso dela era um bom augúrio e sorriu também. Então, ela aproximou-se muito e, sem lhe tocar, repetiu-lhe nítida, quente, ao ouvido:

— O amor não é possível enquanto o Cavaco for vivo.

Não terá tido menos razão do que Adorno que asseverara ser a poesia impossível depois de Auschwitz, mas ele, já o dissemos, não era versado em poesia nem em política, muito menos em metáforas. E foi assim, por um equívoco, que nasceu no coração dele o plano para matar Cavaco Silva.

Durante três meses não voltaram a ver-se. Em bom rigor, ao final de um mês, ela lá lhe enviou uma mensagem para o whatsapp em que perguntava:

— Então, o Cavaco já morreu?

Mas ele, coitado, só soube responder honestamente:

— Ainda não.

Quanta informação escorre por entre as nossas ironias. E quantas coisas ficam por dizer.

Sentado no café à frente da residência do ex-presidente, descobrira um padrão: todas as quintas-feiras, às nove da manhã, o Cavaco saía de casa a pé, acompanhado por um único segurança, e caminhava até outro edifício de habitação a poucos metros de distância. Era aí que colocaria o cone.

O mais difícil foi explicar a um amigo agricultor porque precisava de nitrato de amónio, privilégio exclusivo das empresas agrícolas que usam o químico como adubo.  O ácido esteárico comprou-o numa drogaria e o alumínio em pó ofereceram-lho numa serralharia. A mistura foi meticulosamente comprimida no interior de um cone de trânsito e fechada na base com um relógio de parede em que um fio de cobre ligava ao ponteiro das horas e outro fio ligava a um parafuso no número 9. O plano era, duas horas antes, disfarçado apenas com um colete reflector, colocar cinco cones ao longo do passeio por onde Cavaco passaria. Quando o ponteiro das horas tocasse no parafuso, às nove, a bomba deflagraria, devolvendo ao Cavaco um pouco do seu terror.

Já imaginava o indignado coveiro a perguntar-lhe «O que é que está para aí a fazer? Porque é que está para aí a rir-se à gargalhada? Porque é que está aí, em cima de uma campa, a dançar a carvalhesa?». E ele também já se imaginava a responder a todos os coveiros que não sabem porque é que os cães uivam à lua e que dormem sem sonhos e tomam café sem cafeína e bebem cerveja sem álcool, e envelhecem sem inquietudes, dizendo «por amor».

Mas no dia X, quando se levantou de madrugada já não se falava de outra coisa: o ex-presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, esticara o pernil. Causa da morte? Velhice. O Cavaco pode não ter sido o melhor a cumprir promessas, mas o mesmo não se pode dizer da morte: igualitária, distributiva, quase socialista, não olha a classes nem a extractos bancários, pelo menos enquanto não for privatizada, ou então, já avisava António Aleixo, só o pobre é que morria.

Só nesse momento é que ele, que não era dado às belas-letras muito menos à poesia, entendeu que ela não se referia ao Cavaco, que já levava dentro de si, aliás  como todos, a bomba-relógio, mas ao seu legado, que não se acaba com uma bomba porque o livro da História está sempre a meio.

Mas mais explosivo que nitrato de amónio, ácido esteárico e alumínio em pó, foi receber, passadas escassas horas, uma chamada dela. A convidá-lo, sem mais perguntas. E ele aceitou, sem mais respostas.

1 Comment

  • Mário

    15 Fevereiro, 2021 às

    Fabuloso!

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