Quanto os correios eram de todos nós

Nacional

Ontem falava com a minha Mãe sobre a alteração do sistema de saúde para os antigos trabalhadores dos CTT.

A minha Mãe grande parte da sua vida trabalhou ali. Lembro-me muito bem de sair da escola e ir para a estação de Correios de Santa Maria da Feira. O chefe, que já me conhecia, deixava-me andar livremente por ali.

Até hoje recordo perfeitamente o som dos carimbos, que eram pesados, de madeira (o punho parecia uma lágrima gigante e a minha Mãe queixava-se das dores que lhe provocava carimbar tantas cartas), as pessoas que acorriam à estação que não parecia uma loja de esquina onde se vende de tudo.

Mas a minha parte preferida (além de brincar nas cabines telefónicas da estação) era descer as escadas até à cave e ficar ao pé dos carteiros. Caixotes e caixotes vermelhos cheinhos de envelopes. No tempo em que se escreviam cartas aos amigos, aos “pen friends”, postais de aniversário, de natal. Onde os carteiros eram os mesmos (e não precários) e toda a gente os conhecia. Chegavam a todo o lado nas Zundapp em vez de andarem a pé ou de autocarro como agora. As máquinas a contar cartas, o cheiro do papel, a azáfama dos carteiros que saíam e entravam a toda a hora, sacos e sacos (que pareciam de batatas) cheios de cartas sempre a chegar. Às vezes, enquanto jogávamos à bola cá fora, os filhos dos trabalhadores, lá tínhamos que fugir porque vinha um camião gigante cheio de cartas na descida.

O senhor Cesário, que foi carteiro toda a vida, era o carteiro da minha rua. Às vezes era a Glória, que o substituía naquele “giro” quando ele estava de férias.

A dona Celeste, a dona Olga estavam cá em cima, no atendimento.

Em dias de pagamento de pensões ou de contas, era o caos total naquela estação. Um ano a minha mãe chegou a casa e falou da remodelação dos Correios, mas iria ser apenas visual. As fardas iam ser desenhadas pela Ana Salazar e iam condizer com o design da estação. Eram horríveis.

Todos os anos, recebíamos uma prenda de natal dos Correios. A regra é que a da minha irmã era sempre, mas sempre melhor do que a minha. Era mesmo assim. A dos mais velhos era sempre mais fixe. A pior que recebi foi uma boneca de porcelana. Sempre odiei o raio da boneca.

Sempre que ia ao médico, levava uma guia verde. Ia ao dentista frequentemente. Se me sentisse mal (adoecia várias vezes com problemas na garganta), tinha médico garantido, incluindo visitas ao domicílio. Eu e a minha irmã quando nascemos, a minha Mãe foi muito bem acompanhada, contava-me ontem. Inclusive quando eu quase lhe provoquei a morte ao nascer.

Lembro-me que a minha Mãe tinha sempre um horário fixo, que mudava nas férias ou doença das colegas e às vezes entrava às 6 da manhã (e levantava-se muito cedo para fazer as nossas tranças). Ia a pé. Sustentava sozinha as duas filhas. Tinha comparticipação em medicamentos. Tinha sistema de saúde, a par do SNS. Era sindicalizada e nunca teve problemas com isso. Tinha abono para falhas. Os colegas de trabalho eram amigos de toda uma vida. Tinha horário. Tinha contrato. Tinha um posto de trabalho. Tinha protecção social.

E ontem, enquanto falávamos, parecia tudo tão distante.

Ontem decorreu uma greve dos CTT. Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP esteve na estação de Cabo Ruivo a prestar solidariedade a todos os trabalhadores horas que estarão em contestação à privatização dos CTT e à destruição do Serviço Público Postal, bem como ao roubo dos direitos e garantias dos trabalhadores.

Porque todas as conquistas, todos os direitos, sempre foram conseguidos com a luta. E o serviço público postal é a garantia de que na aldeia mais recôndita todos acedem à informação, aos serviços, aos pagamentos da luz e da água, à comunicação com a família. Muitas vezes, o carteiro, é a única pessoa com quem se fala durante um dia. E é urgente recuperar os direitos destruídos e o direito a ter direitos. A viver feliz. Com dignidade.

Texto escrito a 25 de Outubro e originariamente publicado aqui e ainda tão útil.