Quem quis socialismo na gaveta não vai ter a esquerda num armário

Nacional

© Miguel Figueiredo Lopes/Presidência da República

Há duas leis que são comuns a qualquer sociedade capitalista: a primeira, é que todos vão acabar por ficar ricos; a segunda, é que se isso não acontecer, a culpa será dos comunistas. Como a primeira nunca acontece, a segunda é sempre certa. Como se sabe, da poluição mundial aos laterais do Benfica, tudo é culpa de comunistas. Há décadas. Ninguém se pode espantar, pois, que nesta questão do Orçamento do Estado para 2022 e de uma provável – mas não necessariamente obrigatória – queda do governo, também assim seja. Mesmo que mais nenhum partido tenha votado favoravelmente a uma proposta que só o PS – repito, só o PS – aprovou.

Não vale de muito discutir aquilo que estava em cima da mesa, quando sabemos perfeitamente que o plano do PS nunca foi, desde início, outro que não o chumbo e a ida para eleições. O discurso particular de Ana Catarina Mendes, com insultos à bancada do BE e considerações sonsas face ao PCP, bem como a última intervenção de António Costa – o primeiro de campanha, aliás –, são a face visível daquilo que estava mais ou menos omisso: uma vontade incontrolável, diria até natural, de ataque do PS à esquerda, de vitimização paranóica e de clamor por uma maioria absoluta, que é aquilo que verdadeiramente lhe interessa.

Nas últimas autárquicas, as conclusões e narrativas daí resultantes apontavam para uma vitória “de pirro” do PS e, em particular, uma derrota humilhante em Lisboa. Houve quem visse nisso, provavelmente com alguma razão, uma insatisfação face à conduta do governo. O problema é que muitos desses acham também agora que o governo humilhado e penalizado nas autárquicas já vai ter uma maioria absoluta em Janeiro. A tal “magia negra” do ufano Carlos César vem agora. Por outro lado, ao mesmo tempo que se dizia que o PCP “nada tinha a ganhar” com eleições, mesmo assim não se concluía o que era indiscutivelmente mais óbvio: que o PCP não esteve a negociar para bem dos seus interesses, tácticas ou estratégias – porque para isso só lhe bastava fazer o que tinha feito até aqui – mas sim porque o país exigia e exige aquilo que o PS não lhe quer dar. E o que esta votação do orçamento mostra ou mostrou ontem, não foi a irredutibilidade sectária, a irrazoabilidade das propostas do PCP ou de quem à esquerda votou contra: o resultado mostrou que todos rejeitaram um orçamento que é mau, que é insuficiente, que não atende às necessidades do país, dos trabalhadores, das crianças, dos idosos, do serviço público. E isso já está a sentir-se nas ruas e vai adensar-se ainda mais nas próximas semanas.

Quem também decidiu entrar em cena, como parte indissociável da trama, foi Marcelo Rebelo de Sousa. Não para ajudar o PSD, que dividido e coxo não serve para nada, mas para pagar o apoio implícito de Costa nas eleições presidenciais. Marcelo pagou a dívida alinhando na vontade e na estratégia do governo de culpar a esquerda e caminhar para umas eleições que lhe possam vir a dar maioria absoluta. Em política, tudo se paga. E a dívida de Marcelo, foi paga ontem.

Não colhe a narrativa do “regresso da direita” quando a política seguida já estava nesse exacto sentido. A insatisfação que hoje resvala facilmente para a extrema-direita tem causas, causas essas que só um orçamento fundamentalmente preocupado com mais e melhores serviços públicos, mais e melhores rendimentos, mais e melhores pensões, um combate à escalada dos preços, um combate à precariedade, só isso impediria o crescimento dessas forças anti-democráticas. Pois é também esse descontentamento que vão adensar com más políticas orçamentais. É essa raiva que vão instigar com um rumo errado. É também daí que resulta o real crescimento das fileiras de movimentos perigosos, que apesar de objectivos nefastos, têm problemas reais na sua base. Foi esse mal pela raiz que o PS, por seu exclusivo tacticismo político, não quis cortar.

Quanto à narrativa de “abertura da porta” à direita, já que não há discernimento, haja pelo menos algum decoro e memória histórica. O PCP combate a direita e a extrema-direita há 100 anos. Aguentou as vergastadas do fascismo e teve clarividência para construir a democracia política. Não recebe lições de ninguém. O PS está no governo por causa do PCP. Que as circunstâncias são e serão difíceis todos sabemos, mas a culpa e os culpados não estão na esquerda que é coerente e é firme. A culpa, de facto, está no tacticismo e na própria natureza deste PS, que jamais suportará uma governação verdadeiramente de esquerda, que desperdiça todas as oportunidades históricas para tal, e que tem a ânsia de governar com pleno poder. Pode ser, no entanto, que as contas lhe saiam furadas. Quem quis ter o socialismo na gaveta, não pense que vai ter a esquerda num armário.

4 Comments

  • JAL

    1 Novembro, 2021 às

    Se “O PS está no governo por causa do PCP.” e se “A culpa, de facto, está no tacticismo e na própria natureza deste PS.” onde está a “coerência e a firmeza” do PCP e do BE em querer que ele forme governo?

  • M. Amélia AlvesPinto de Carvalho

    30 Outubro, 2021 às

    Maravilhoso.
    AVANTE CAMARADAS!

  • Gastão Barros

    29 Outubro, 2021 às

    Óptimo artigo. Estou totalmente de acordo. Sou reformado e velho, mas não desisto de viver e de lutar por uma sociedade mais justa. Pelo SOCIALISMO!

  • Diclinda Baudouin

    28 Outubro, 2021 às

    genial!!!

Comments are closed.