R: raça

Teoria

R: raça

Não há raças humanas, concordam os biólogos. “Raça” é uma categoria inventada a partir do séc. XVI pelo capitalismo embrionário para justificar o comércio de escravos. A escravatura do mundo antigo, por exemplo, não tinha qualquer relação com a cor da pele. Todo o significado político e social da palavra “raça” advém, portanto, das terríveis consequências históricas que essa ficção legitimou: o racismo. Por outras palavras, a ideia de raça só existe por causa do racismo.

Já há um século, W.E.B. Du Bois, vulto maior do movimento anti-racista dos EUA, criticava a categorização biológica das diferenças sociais, históricas e culturais entre humanos. Para Du Bois, não é sequer possível definir o que é um “negro” ou um “branco” (no passado, irlandeses em Inglaterra e polacos em França não eram considerados “brancos”). Ainda assim, sendo essas categorias impostas socialmente, elas acabam por ganhar um real significado cultural, e político, pelo que podem ser necessárias à luta antiracista.

O racismo não é, contudo, o mesmo que discriminação racial. Um trabalhador negro pode dicriminar um branco pela sua cor da pele, mas não pode, mesmo que queira, ser racista. O racismo, para sê-lo, tem de ser engrenagem (ideológica, cultural, jurídica, comportamental, psicológica, política etc) do sistema capitalista, um sistema de exploração humana historicamente construído ao longo de cinco séculos e o aparelho ideológico que o suporta. Esse sistema é inseparável de estruturas de poder e de formas de divisão do trabalho que não dependem de actos individuais. Ou seja, mesmo que amanhã não houvesse actos individuais de discriminação e ódio contra negros, a maioria das trabalhadoras das limpezas continuariam a ser negras e mal remuneradas.

O racismo é, historicamente, a aduela que suporta o arco do capitalismo, pelo que só a superação deste levará ao desaparecimento daquele.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um breve contributo para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

1 Comment

  • Guilherme

    26 Outubro, 2021 às

    É lamentável que a recuperação de Du Bois neste texto serve mais para denegrir a perspectiva marxista do que para a suportar. Creio que o autor esteja a ser demasiado caridoso para com a ortodoxia ‘anti-racista’ dominante na esquerda, que nada é senão uma máquina de propagação ideológica de raça (e portanto, do racismo) no sentido que um marxista deve entender o racismo como a crença em raças. Pegarei em duas passagens:

    > sendo essas categorias impostas socialmente, elas acabam por ganhar um real significado cultural, e político, pelo que podem ser necessárias à luta antiracista

    Pelo contrário, a atual luta anti-racista dá cada vez mais credência à ideia de raça, sendo que hoje os porta-vozes mais visíveis até rejeitam o anti-racismo tradicional — o tal ‘daltonismo racial’, ou ‘colorblindness’ — com o qual cresci nos anos 90 e 2000, e insistem numa perspetiva de diferenças raciais, reificando uma ilusão retrógrada.

    Antigamente, o compromisso da esquerda com o racismo resumia-se num entender que afirmava, entre outras coisas, (a) que as pessoas racistas estão incorretas, (b) que o racismo é um ressentimento desnorteado, (c), que os racistas adotam uma falsa consciência, e que (d) os racistas acabam por ser negativamente afetados pelo próprio racismo ao cair numa narrativa racial que põe em causa o veículo de revolução proletária.

    Hoje em dia, a esquerda anti-racista inverte estas observações e coloca as seguintes: (a) o racismo é fruto duma consciência racial genuína oriunda da ‘supremacia branca’ e do ‘privilégio branco’, (b) as pessoas brancas são coletivamente responsáveis por atos racistas, (c) o mecanismo de opressão racial é interno ao proletariado (ao invés de externo), e (d) as diferenças raciais são importantes.

    Muitos dos bem-intencionados crentes na justiça social sucumbem ao determinismo biológico, a armadura do inimigo, quando veem ao seu redor os horríveis sinais de que o racismo continua a prosperar no nosso mundo. Cansados da luta, eles levantam as mãos e declaram que o racismo, se não geneticamente programado, é uma ideia tão antiga e arraigada que ‘ganhou vida própria’. Dessa forma, eles chegam muito mais perto do que imaginam dos pontos de vista daqueles a quem ostensivamente se opõem.

    Mas raça não é biologia nem uma ideia absorvida pela biologia através duma herança lamarckiana. É ideologia, e as ideologias não têm vida própria. Nem podem ser transmitidas ou herdadas: uma doutrina pode ser, ou um nome, ou uma propriedade, mas não uma ideologia. Se a raça sobrevive hoje, não sobrevive porque a herdamos de nossos antepassados do século XVII ou do século XVIII ou XIX, mas porque continuamos a criá-la hoje.

    O David Brion Davis teve a coragem e a honestidade de argumentar a tese perturbadora de que, durante a era da Revolução Americana, aqueles que se opunham à escravidão eram cúmplices daqueles que a favoreciam em definir a raça como sua explicação. Devemos ser corajosos e honestos o suficiente para admitir algo semelhante sobre nosso próprio tempo e as nossas próprias ações.

    Aqueles que criam e recriam a raça hoje não são apenas a multidão que matou um jovem africano ou as pessoas que se juntam à Nova Ordem Social. Eles também são aqueles escritores académicos cuja invocação de “atitudes” autopropulsoras e falhas trágicas atribui aos africanos e aos seus descendentes uma categoria especial, colocando-os num mundo exclusivamente seu e fora da história — uma forma de apartheid intelectual não menos feio ou opressor, apesar do seu véu justiceiro (para não dizer hipócrita), do que aquele praticado pelos racistas mais caricatos.

    São aqueles que permanecem incapazes de promover ou mesmo definir a justiça sem aumentar a autoridade e o prestígio da raça; algo que continuarão a fazer para sempre, enquanto o objetivo mais radical da oposição política continuar a ser a redistribuição racial do desemprego, da pobreza e da injustiça, em vez da sua abolição.

    > Um trabalhador negro pode dicriminar um branco pela sua cor da pele, mas não pode, mesmo que queira, ser racista.

    A equação “racismo = preconceito + poder” pode parecer instrutiva mas induz em erro e traz consigo umas implicações perigosas. Em primeiro lugar, porque sugere a existência duma hierarquia de poder racial (que curiosamente nunca é esquematizada). E em segundo lugar, porque sugere que uma pessoa branca possui algum tipo de poder social com base na sua cor de pele. Mas eu pergunto-me se quem acredita nisto é capaz de ir a um bairro social e dizer às famílias brancas multigeracionais que lá vivem na miséria que desfrutam dum privilégio racial. Ambas estas propriedades servem para reforçar a ideia duma ‘consciência racial’ coletiva, algo que eu espero que seja obviamente contraproducente para qualquer leitor marxista. Para além disso, esta compreensão simplista vai contra uma das premissas básicas marxistas que afirma que ninguém é privilegiado na nossa sociedade sem ser a burguesia.

    Esta passagem também revela um paternalismo sinistro ao insinuar que as pessoas negras nem sequer têm agência própria para manifestarem ódio racial. Pergunto-me se o autor está familiarizado com os israelitas negros, e se é capaz de dizer com toda a convicção que não se trata dum grupo racista.

    O racismo tem uma causa antecedente: a sociedade de classes. É uma ideologia do império colonial, inventada a posteriori para justificar a brutalização das práticas da exploração dos povos colonizados. O seu propósito ideológico é a divisão do proletariado com a mistificação duma falsa consciência.

    “Nada do passado poderia manter a raça viva se não a reinventássemos e re-ritualizássemos constantemente para se adequar ao nosso terreno. Se a raça sobrevive hoje, só pode fazê-lo porque continuamos a criá-la e recriá-la na nossa vida social, continuamos a verificá-la e, portanto, continuamos a precisar de um vocabulário social que nos permita entender não o que nossos antepassados fizeram, mas o que nós mesmos escolhemos fazer hoje.”

    — Barbara & Karen Fields, “Racecraft”, 2012

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