Q: qAnon

Teoria

Q: qAnon

O Libelo de Sangue foi uma teoria da conspiração da Idade Média que acusava os judeus de raptarem crianças para lhes beberem o sangue. Improvavelmente, no ano do senhor de 2020, a velha lenda ressuscitou sob o rótulo de Pizzagate, desta vez incriminando a “elite globalista liberal” pelo rapto de crianças para abastecimento de rituais satânicos na cave de uma pizzaria de Washington onde ora tinham lugar abusos sexuais ora se procedia à extracção do androcromo, uma espécie de elixir da eterna juventude presente no sangue das crianças. Eis a estância do Qanon, onde se levantam as pedras da história para destapar a ignorância e os vermes. É como se se tivesse definitivamente fechado o parêntese de Gutenberg que, propôs Sauerberg, ditasse o ocaso da era do monopólio do conhecimento mediado pela palavra escrita, convenientemente restringida à autoridade dos sábios e o regresso à oralidade das histórias contadas não à volta da fogueira, mas no caos das redes sociais. Mas não é só isso.

O Pizzagate é apenas uma entre muitas conspirações que fermentam sob o signo do QAnon, o misterioso oráculo dos segredos do Estado profundo que, infiltrado no Departamento de Energia dos EUA com o nível de acesso de segurança “Q”, revelaria as mais fabulosas profecias sobre o fim da ordem vigente. Desde seres humanos com ADN de serpente (que já levou um pai a matar os próprios filhos), ao regresso triunfante de Trump numa tempestade de execuções sumárias, ao negacionismo Covid anti-vacinas mais chalupa, o QAnon oferece explicações para tudo, até mesmo para o falhanço da própria futurologia. Mas o que verdadeiramente interessa é saber porque é que teorias marginais, sem qualquer fundamento nem provas, saltaram do esgoto do 4Chan para o palco principal da política mundial.

O QAnon, como qualquer outra teoria conspirativa sem quaisquer provas, não é só mais um exemplo de suspensão da razão: é um reflexo cultural da crise estrutural do capitalismo tardio, que já não se consegue explicar nem pensar; é a fast-food cognitiva com que os explorados foram alimentados e que parece poder organizar e explicar o caos em que se dissolve a mundividência de um sistema cada vez mais imprevisível.

Por outro lado, a Ocidente nada de novo: do ponto de vista epistemológico, nada separa um crente em Deus de um crente no QAnon, de um terraplanista ou de quem acha que o homem não foi à lua. Nem um nem outro precisam de evidência para acreditar (abençoados são os que crêem sem verem, dizia São Paulo); tanto um como outro são idealistas e contrários ao marxismo; tanto um como outro reinterpretam a teoria numa espiral autojustificativa e dogmática que ora metaforiza a doutrina, ora lhe apõe emendas que acomodam os embates da realidade; tanto um como outro preservam a dominação da classe aparentando questioná-la.

A internet desempenhou um papel importantíssimo no alargamento e na pulverização do idealismo para outras formas de dogma, fé e mentira, mas não inventou nenhuma delas.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um breve contributo para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

1 Comment

  • Isabel Varela

    21 Outubro, 2021 às

    Grande textos

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