Karl Marx e Charles Darwin são não só dois pensadores revolucionários atendendo ao envolvente científico do século XIX, como emergem como os maiores e mais duradouros transformadores sociais até aos dias de hoje. Para além das obras e legado deixados, por um e por outro, e do seu intelecto, capacidade de análise e inovação de pensamento, a sua modernidade não está dissociada de terem sido contemporâneos por um lado, e, por outro, das relações que estabeleceram directa ou indirectamente entre si e as suas linhas de pensamento.
As voltas do tempo
Se tivessem perguntado a Marx e Darwin por que razão lhes guardou o destino cruzarem-se em simultâneo nas voltas do tempo e na história da humanidade, a resposta muito possivelmente teria sido distinta, fosse do ponto de vista da teologia, fosse do ponto de vista científico. Karl Marx teria desdenhado uma vontade divina para existência e contemporaneidade do próprio e de Charles Darwin, “a religião é o ópio do povo”, disse na introdução da obra “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, publicada em 1844. Para Marx parecia certo que “o homem faz a religião”, nunca o contrário, e, portanto, esta simultaneidade existencial com Charles Darwin, que tanto o influenciou resultaria muito mais do materialismo dialéctico e materialismo histórico que moldando os intervenientes do tempo os acabou por definir enquanto seres, numa aleatoriedade francamente diminuída. É verdade que Darwin se afirmou vezes suficientes como não crente, afirmando ainda “que não acredito na Bíblia como revelação divina”; no entanto, talvez pela influência da matriz cristã na esfera do poder vitoriano, não fez reflexo do seu trabalho como afronte ao poder estabelecido da religião, deixando-lhe o seu papel de intervenção social tranquilamente em paz e ao critério de uma não muito iluminada, cientificamente, classe dominante altamente conservadora. Darwin saberia que a sua investigação o procrastinaria já o suficiente perante a sociedade e não compraria outras mais guerras, que pouco lhe diziam e lhe dificultariam ainda mais a aceitação geral do seu trabalho. Se do ponto de vista teológico é difícil perscrutar então o que diria taxativamente Darwin sobre a questão das voltas do tempo que levantámos, é mais certo afirmar que para ele num plano geral a aleatoriedade impressa pela selecção natural teria muito mais relevância neste encontro, do que pormenores como o Homem ser ou deixar de ser um ser socialmente complexo; entende-se, é que puxado tanto em perspectiva a história do planeta, essas correlações e o que elas determinam passaram a ter um peso menor, desprezado até pelo cientista. Aliás, não obstante, a sua genialidade e intelecto, Charles Darwin nunca escondeu a sua sobranceria em relação a vários temas, num claro reflexo da sua adaptação à sociedade vitoriana, que se afirmava em todas as áreas do pensamento humano, como superior a qualquer outra geração que a antecedeu.
A verdade é que a contemporaneidade destes dois homens provoca consequências e aporta complexidades espelhadas nas suas obras e no desenvolvimento do pensamento científico até aos dias de hoje. Difícil será imaginar o que e como seriam as obras na inexistência de um dos autores, e, por vontade divina ou aleatoriedade matemática e inflexível da evolução do Homem enquanto ser exclusivamente biológico ou por molde e pressão do envolvente, a consequência no desenvolvimento de uma das duas personagens na falta de outra. Só temos de agradecer que assim não tenha sido.
Contraposições e afinidades
Em 1859 Karl Marx publica a obra Contribuição à Crítica da Economia Política, uma complexa crítica da economia política, iniciando um caminho que o levaria até à sua principal escrita, O Capital. Nesse mesmo ano Charles Darwin vê publicado pela primeira vez A Origem das Espécies. Se Charles Darwin, talvez pela sua essência burguesa, não obstante a sua obra revolucionária, qual dilema que se defronta uma posição de classe com a inteligência, a curiosidade científica e o valor da verdade, receia admitir o possível peso de influência dos textos de Karl Marx; doutro lado este último não nega nunca a sua admiração pelo britânico (“a Charles Darwin de um confesso admirador, de Karl Marx”, escreveu Karl Marx depois de ler a obra de Darwin) e que alguns dos fundamentos do darwinismo pesam de forma decisiva na construção do marxismo, não negando porém e sublinhando o que discorda e considera, digamos, uma perspectiva talvez demasiado linear no progresso e evolução, sobretudo do homem apenas enquanto ser biológico.
É nesta primeira perspectiva que encontramos também a primeira diferença entre os dois homens, sendo que ninguém lhes cobra essa diversidade, mas antes a tentamos compreender, correlacionar e depreender a sua consequência no presente; escreveu então Marx na mesma obra primeiramente supracitada que “[…] o homem não é um ser abstracto, acocorado fora do mundo”, em claro contraste, antecipado, com o que pensaria mais adiante Charles Darwin, que afasta o Homem de qualquer interferência na [sua] evolução, num gradualismo assumido, que não permite a concepção de que pequenas alterações genéticas, fruto de uma relação estabelecida e impressa por pressão ambiental (ou tanto quanto valha, social, económica e cultural); e, portanto, que transformações quantitativas, não poderiam gerar ou promover grandes transformações qualitativas ou significativas alterações nas características individuais. Aqui, não é só Marx que mais tarde afirma que Darwin, da mesma forma que este o influenciou sobretudo por encontrar no evolucionismo animal leis idênticas ao que o próprio encontrara na evolução da história humana, deveria ter aplicado ao evolucionismo, o materialismo histórico, como o faz também depois Friedrich Engels, Karl von Scherzer, com o “darwinismo social”, Pierre Tremaux com os conceitos das profundas alterações na natureza estarem intimamente correlacionadas com a evolução das espécies e da proporcionalidade entre o progresso e a história evolutiva, ou, por fim, o biólogo americano Stephen Jay Gould, que desenvolve parte do seu trabalho, geralmente aceite e reconhecido, dessa premissa: que nem a história evolutiva da perspectiva orgânica do Homem viu já o seu fim, mas também que o materialismo histórico e as leis marxistas e darwinistas pelo materialismo dialéctico, continuam a definir a evolução da espécie biológica e social, em que uma não se separa da outra, nem agora, nem faz já demasiado tempo. Na verdade, no meio da razão de Charles Darwin sobre o evolucionismo e de como a selecção natural actuou, este nunca deu por hipótese, remota sequer, que as próprias espécies pudessem determinar a sua evolução pela sua acção transformadora sobre a natureza e não necessariamente sempre e só o contrário. Terá sido não raras vezes esta a limitação de Darwin, a de não reconhecer o Homem [e, talvez não só, mas que fique isso para depois] como uma espécie regida por um propósito consciente de superação da sua condição exclusivamente biológica, limitação que impediu a sua construção de uma intervenção mais ampla e não só puramente académica. Darwin nunca se retirou de uma posição de classe de privilégio, que lhe valeu por exemplo a condenação e colagem de vários rótulos, uns mais justos do que outros, como eurocêntrico, colonialista, antifeminista ou até racista, e, a pergunta é se isso lhe limitou a capacidade de intervir sobre as suas próprias descobertas científicas, ou se estas à luz da sua interpretação lhe reforçaram essas concepções.
Mas tudo dito, há uma transversalidade comum ao desenvolvimento de ambos os pensamentos, de forma mais ou menos intencional, que é o confronto com o pensamento dominante, a burguesia como vanguarda do pensamento político e as sagradas escrituras como a dianteira do saber e do conhecimento. Na verdade, é essa a grande ponte entre o darwinismo e o marxismo, até para lá da influência que cada obra provoca na outra, é o materialismo; materialismo seja na construção e análise histórica de Marx, seja na postura do desenvolvimento do pensamento darwiniano perante a evolução da vida. É no fundo a honestidade materialista de ambos que comprova o grande valor científico do marxismo e o darwinismo e os coloca acima de outros paralelos, cada um na sua área. Essa honestidade, repito, mais ou menos intencional e/ou consciente, dúvida suscitada sobretudo (para não dizer só) no caso de Darwin, é determinante nos anos que se seguem, e em trabalhos como os do desenvolvimento do Marxismo, com as obras de Lenine, ou no desenvolvimento do Darwinismo, com os estudos de Gregor Mendel ou James Watson e Francis Crick, que reforçam de forma irreversível o desenvolvimento das ciências da natureza e do homem e deita por terra preconceitos de raça, classe e género que apenas subsistem no domínio da ignorância ou da conveniência do discurso político dominante e burguês. Charles Darwin, mais tarde do que cedo, descartando a sua típica precaução com a opinião pública sobre si mesmo (lembrando por exemplo, que demorou mais de quinze a anos a aceitar publicar A Origem das Espécies), admite que o conjunto de obras Marx/Darwin são luzes renascentistas na disseminação do conhecimento e do saber.
Inseparabilidade
Como remate, para se atingir a dimensão do proposto, e se falhar, falhar-se-á por pouco, é que tanto o darwinismo como o marxismo iniciam um processo de construção científico, filosófico, social, económico, cultural e político, verdadeiramente transformador; ao ponto de que não terá havido avanço nenhum, nas dimensões enunciadas que não tenham uma correlação directa ou indirecta com a obra de Marx e de Darwin. Não se poderá, naturalmente, apagar todos os que os coadjuvaram, sobretudo no acrescento do seu contributo pensado e escrito (alguns já referidos), mas também dos movimentos de massas e populares revolucionários, iluminados então no seu propósito consciente, e, sencientes e conhecedores da sua origem e capacidade de intervenção no processo evolutivo e de progresso. É deles também o caminho percorrido.
Nem sempre é necessário um afastamento temporal para se compreender a extensão da intervenção de uma determinada personagem, ou conjunto delas; pois se houvesse a necessidade de resumir esse papel que lhes coube na história, talvez já o tivesse feito Engels no funeral de Karl Marx, “tal como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, assim Marx descobriu a lei da evolução na história humana” e esse papel é um que é indelével na compreensão do mundo, da vida e da humanidade em todas as suas dimensões, biológicas e sociais, tornando as duas correntes como indispensáveis à transformação que ambiciona o Homem.
19 Outubro, 2021 às
Hoffmann, vê a última Vértice (nº 199, abril-junho 2021). Tens lá um texto para ti.
17 Outubro, 2021 às
No entanto, Estaline acreditava que a evolução darwiniana por meio da seleção natural era uma ideia ocidental falsa e corrupta.