A “esquerda” pró-imperialista

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“As ideias da classe dominante são, a todo o tempo, as ideias dominantes. Isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a sua força intelectual dominante”, K. Marx in A ideologia Alemã, 1845
Claro que apenas uma leitura de todo o capítulo “Oposição das perspectivas materialista e idealista” pode ajudar-nos a ter uma perfeita compreensão da extensão do significado desta afirmação de Marx, bem como a compreender as suas implicações históricas e a sua abordagem dialéctica, mas deixemos isso para o leitor mais afoito da obra e tentemos partir daqui para uma abordagem do panorama político e ideológico actual, numa tentativa de aprofundar uma descrição da “esquerda de direita” que ao longo do nosso tempo sempre cumpre com afinco o papel que o dono lhe destina.


É impossível partir dos postulados ideológicos e culturais da classe dominante actual para construir uma acção revolucionária que ponha em causa o seu papel de domínio e que contribua para a ascensão de outra classe como força dominante. Por exemplo, é impossível aceitar a ideia de que “já não há classes” e simultaneamente construir uma teoria e acção revolucionárias. Mais certo, é impossível utilizar como ferramenta de interpretação da realidade o idealismo e esperar um resultado revolucionário, na medida em que essa abordagem idealista da realidade concorre para a aceitação de ideias como forças absolutas, sem olhar às relações materiais objectivas e às principais leis do materialismo histórico: a lei da interpenetração dos opostos, a lei da relação entre qualidade e quantidade, a lei da dupla negação; bem como à omnilateralidade como ferramenta de análise.

Não é de hoje que a burguesia, enquanto força material e intelectual dominante, procura todas as formas de aprofundar a sua hegemonia em todos os planos da vida. Se é assim na economia, não podia deixar de ser no plano ideológico e cultural. Certamente que podemos ir a épocas anteriores, mas podemos iniciar este nosso passeio pelo aproveitamento que a burguesia internacional fez de várias oposições internas dos movimentos comunistas, particularmente do movimento comunista do espaço soviético.

Em diversos momentos, vários pensadores marxistas em linha de ruptura ou diferendo com as linhas oficiais dos partidos, foram elevados a grandes defensores do verdadeiro socialismo e, curiosamente, abraçados e acolhidos simpaticamente pela burguesia dominante. O caso de Trotsky – e não se coloca aqui neste artigo o seu real posicionamento ou real acção e motivação, mas o aproveitamento deles feito – é paradigmático: um dos mais importantes líderes da revolução de Outubro, um firme dirigente político e militar do campo revolucionário que representava o demónio para todo o capitalismo mundial passa a ser o democrata, o portador dos verdadeiros ideais de justiça e solidariedade por oposição à linha decidida pelo PCUS que seria – essa sim – o imutável mal sobre a terra.

Esta apropriação por parte das forças da burguesia de posicionamentos, discussões e cisões no movimento internacional comunista é constante e não pode funcionar como um dissuasor do debate, da reflexão e da crítica, mas deve contribuir para que possamos, a cada momento histórico, avaliar a melhor forma de contribuir para o aprofundamento e consolidação do movimento, conscientes de que é mais produtivo falhar colectivamente do que acertar sozinho. E pode, também, funcionar como um instrumento para que se defina o campo ideológico da esquerda revolucionária em cada momento histórico, em relação profundamente dialéctica, não apenas com os postulados mas com a forma como eles se relacionam com cada realidade concreta.

Ao longo do tempo, o capitalismo desenvolveu mecanismos vários para incorporação destas teses de que “o comunismo é bonito no papel, mas na prática é impossível” que conduzem à tese fatal que orienta uma boa parte dos “esquerdistas” de hoje, que podemos incluir numa definição « “Esquerda” pró-imperialista» e que assenta na conclusão de “todo o socialismo é bom menos o que existe”.

A forma como em Portugal se posicionam os partidos da burguesia pode funcionar como um bom ponto de partida. Vejamos: os postulados são aceites em função do enraizamento da ideia dominante de forma praticamente igual por todos esses partidos, desde o BE à Iniciativa Liberal e o posicionamento é feito, não em função da aplicação de uma metodologia de análise, mas da resposta dos eleitorados alvo de cada partido.

Ou seja, o quadro de análise do BE sobre a União Europeia é baseado na ideia dominante construída pelo próprio capitalismo europeu de que a União Europeia é um projecto capaz de, na essência, dar resposta à necessidade de progresso e elevação das condições da qualidade de vida das populações. Claro que o BE não se posiciona como o CDS em todas as matérias relativas à UE, mas não questiona a sua essência, pelo contrário, luta pelo seu aprofundamento e pelo branqueamento da sua natureza capitalista, federalista e imperialista. Da mesma forma, no conjunto dos assuntos geopolíticos, a aceitação de postulados absolutos como “Putin é mau”, “China é má”, “Gaddafi é mau”, “Venezuela é ditadura”, “Cuba é ditadura”, provoca uma impossibilidade de tomar uma posição que não alinhe com o imperialismo norte-americano ou que, pelo menos, não o reforce. Mesmo que se tente fazer o número “nem Estados Unidos nem Rússia”, ou “nem Estados Unidos nem China”, ou “nem Estados Unidos nem Cuba”, tendo em conta que objectivamente ao BE apenas cabe decidir o posicionamento de Portugal e não o sistema interno de cada país, a suposta neutralidade redunda sempre no fortalecimento da posição dominante.

A “esquerda” pró-imperialista acaba por assumir sempre esse papel real de combater todos os processos de construção do socialismo real, bem como toma as dores do capitalismo contra todos quantos o capitalismo considera “não-democratas” à luz dos seus próprios critérios, como é o caso da Rússia, da Síria, da Líbia e de outros países que, sofrendo das suas contradições internas e pressões externas, são rapidamente rotulados e alvo de um julgamento imperialista que vem das forças burguesas de “esquerda” e de direita. O simplismo baseado em campanhas ideológicas iniciadas há décadas – como é o caso das campanhas de mentira sobre vários estados e povos – acaba por ser, nem mais, nem menos, do que a aceitação dessas campanhas.

Isto é transversal a todos os campos da acção política. Do preconceito e estereótipo de género à abordagem sobre a política externa. Em todos esses campos verificamos que a “esquerda” pró-imperialista não dispõe de ferramentas de análise libertas e independentes da ideologia dominante, ainda por cima altamente contaminadas pela comunicação social dominante.

É a demonização da Rússia que leva o BE a apoiar o movimento fascista da Praça Maidan, tal como é a demonização de Gaddafi que o leva a apoiar a no-fly zone sobre a Líbia, abrindo espaço à intervenção militar. É a demonização da China que leva o BE a fazer o jogo do capitalismo pela reocupação feudal do Tibete, entre tantas outras jogadas de boicote ao prestígio internacional da República Popular da China. Da mesma forma, é a aceitação dos postulados de que “só as democracias autorizadas pelo capital são verdadeiras” que leva o BE a atacar a Venezuela e a ter uma posição oficial de não solidariedade com Cuba. A “esquerda” pró-imperialista tem esta incapacidade por definição: a de produzir posições de esquerda com premissas de direita.

A ideia tanto ingénua como deliberadamente reacionária de que o socialismo não é um processo com as suas próprias contradições e que se implanta num cenário e numa realidade concreta, mas uma espécie de céu na terra instantâneo e imediato, acaba por beneficiar os delatores do socialismo, mesmo os que usam o socialismo como suposto objectivo político e programático. Assim, o combate a todas as formas de organização política que não se enquadram nas definições de democracia como a dita “ocidental” acaba por funcionar como catalisador da visão dominante, aprofundando a sua aceitação pelas massas. É uma visão eurocêntrica e imperialista do mundo, profundamente primeiro-mundista, colonialista e moralista, ao contrário do que tanto afirmam ser.

A aceitação das terminologias, das abordagens, dos conceitos e das soluções apresentadas pela classe dominante implica a limitação das conclusões que se podem tirar de cada problema com que nos confrontamos.

Veja-se como a propósito dos “trabalhadores do sexo” acabam a defender os clientes machistas que compram mulheres. Veja-se como a pretexto da liberdade, acabam a defender o preconceito e estereótipo de género, como a pretexto do ambiente acabam a defender a mercantilização da natureza e os mercados de emissões. Veja-se como a pretexto da democracia acabam a defender o fascismo na Ucrânia. E, em outros casos, veja-se como em função da narrativa dominante na comunicação social definiram as suas posições sobre a Venezuela – em tempos iniciais e de crescimento económico, a Venezuela era o maior exemplo de poder popular e, agora que mais precisa da nossa solidariedade, em tempos de crise, Maduro é um ditador. E lembremos o Brasil e o posicionamento tíbio da “esquerda” pró-imperialista em Portugal e a participação activa dessa “esquerda” no Brasil (sem querer simplificar demais) quando se levantou um movimento de origem aparentemente popular contra o PT (com tudo o que nos distancia do PT) a pretexto da luta contra os estádios do mundial e a corrupção, assim dando os primeiros passos para a justificação de um golpe da direita mais reaccionária do Brasil.

Em cada momento, a “esquerda” pró-imperialista escolhe o seu posicionamento usando os óculos da burguesia. E usando os óculos da burguesia, não se fazem posições contra o imperialismo.

Não se tiram conclusões de esquerda com premissas de direita. 

5 Comments

  • ISABEL NOGUEIRA

    1 Novembro, 2021 às

    Boa análise.

  • Daniel Madruga

    14 Outubro, 2021 às

    Concordo e subscrevo à muito com tudo o que aqui foi dito.
    Tenho pena que que as pessoas que mais precisam de se informar deste assunto não consigam entender o artigo.

  • João Vasconcelos

    12 Outubro, 2021 às

    Que escrito mais simplista. Quem assim escreve insere-se no campo pseudo anti-imperialista e apenas pretende justificar as ditaduras do nosso tempo, supostamente socialistas e anti-imperialistas e até ditaduras onde predomia a cleptocracia – China, Rússia, Coreia do Norte, Nicarágua, Angola… em nome do socialismo, como se o socialismo fosse uma caricatura.

  • Pedro

    12 Outubro, 2021 às

    A retórica é boa e até concordo com boa parte (a defesa da Rússia e da China apenas porque se opõem ao bloco ocidental para mim é problemática), no entanto não deixa de ser curioso que aquele que deveria ser o partido da classe operária portuguesa prefere no parlamento europeu estar inserido num grupo parlamentar onde se encontram forças da dita “esquerda pró-imperialista” como o BE,o SYRIZA o DIE LINKE entre outros igualmente maus (e sim estou a utilizar uma definição taxativa para estes partidos), ao mesmo tempo que hostiliza outros partidos comunistas que não cedem ao imperialismo (mas esses querem o socialismo amanhã, são loucos…).Como diz,e bem, o texto a burguesia tem-se aproveitado das cisões e contradições do MCI para o destruir, no entanto o mesmo PCP ao mesmo tempo que diz defender os trabalhadores faz juras de que pretende defender as PME’s, como se isso não fosse uma enorme contradição. Enfim as palavras são bonitas infelizmente a prática não tanto.

  • José António Silva

    12 Outubro, 2021 às

    Excelente análise.

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