Seja abençoada a violência policial e louvados os agressores

Nacional

Para mim seria líquido que ver uma pessoa a ser asfixiada até à inconsciência mereceria o repúdio generalizado de toda a gente. Essa mesma gente que – isto a propósito da data – é maioritariamente crente em valores de bondade e amor ao próximo que professa a religião católica.

Devo ter-me enganado redondamente, a maioria preferiu a parte da ira e da vingança até ao ridículo e pergunta «mas o que estava ele a fazer?», «o militar estava a cumprir o seu dever!», «temos que saber se ele não estava a cometer um crime». Temos? Vi uma mensagem de um jornalista a defender em absoluto a acção de um militar porque o cidadão estaria a «coagir» a funcionária a fazer-lhe o IRS – o que nós vemos é uma pessoa do outro lado de um balcão bem alto – e a incomodá-la (bem, já sei o que fazer da próxima vez que a Autoridade Tributária violar todos os meus direitos de defesa, o que não é raro). Ainda disse o «mata leão» é uma técnica militar usada para a imobilização e não mata. Fiquei muito mais descansada.

Depois li o comunicado da Associação Sócio-Profissional que espera que a acção daquela pessoa – que nunca se identificou devidamente – «mereça público louvor».

E sempre uma afirmação subjacente – e perigosa – de que é proibido filmar (em absoluto) por se tratar de um local público e por isso a pessoa em causa estava a cometer um crime. Será?

De acordo com o Tribunal Constitucional o objecto do direito a própria imagem é: “o retrato físico da pessoa, em pintura, fotografia, desenho, slide, ou outra qualquer forma de representação gráfica, e não a imagem em que os outros fazem de cada um de nos. Ele não consiste, por isso, num direito de cada pessoa a ser representada publicamente de acordo com aquilo que ela realmente é ou pensa ser.  “O conceito do direito a própria imagem, por tanto, consiste na faculdade de aproveitar ou de excluir a possibilidade de representação gráfica das expressões pessoal visível do aspecto físico externo que singularizam e tornam reconhecível figura da pessoa humana”.

No Código Civil, está regulado de forma a que a recolha de imagens seja entendida como possível na generalidade das circunstâncias, particularmente em locais ou eventos públicos, sendo as restrições colocadas principalmente na questão da difusão e divulgação dessas imagens.

Artigo 79.º do Código Civil
(Direito à imagem)

1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.

Já no Código Penal:

Artigo 192º
(Devassa da vida privada)

1. Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar e sexual:
a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa ou comunicação telefónica;
b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;
c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado, ou
d) Divulgar factos relacionados à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;
É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2. O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.

Artigo 193º
(Devassa por meio de informática)

1. Quem criar, mantiver ou utilizar um ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções politicas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica, é punido com a pena até 2 anos de prisão ou com pena de multa até 240 dias.
2. A tentativa é punível.

Artigo199º
(Gravações e fotografias ilícitas)

1. Quem, sem consentimento:
a) gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até 1 ano com pena de multa até 240 dias.

2. Na mesma pena incorre quem, contra vontade:
a) fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filme referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
3. É correspondentemente aplicável ao disposto nos artigos 197º e 198º.

Significa que, no caso do artigo 192º tem que ser provada a intenção de devassar a vida privada (o que nos vários casos que possa surgir esta questão está completamente fora de hipótese, não se enquadra aqui). Já no caso do artigo 199º tem que ser uma fotografia de uma pessoa, isto é, tem que se recorrer à definição (a do Tribunal Constitucional) de imagem e daí conclui-se que a foto tem que ser direccionada a esta ou àquela pessoa de forma a que se possa ser reconhecida. De facto estamos a falar de retratos.

O cidadão fez uma filmagem de si próprio, ninguém mais é identificável. E tê-lo feito salvou-lhe a vida.

Não lhe foi dada nenhuma ordem por agente policial para que parasse – aí poderia existir o crime de desobediência. A polícia tinha sido chamada e ele estava a aguardar. E quando chegasse, tomaria nota da ocorrência, elaboraria o auto e o Ministério Público decidiria se houver crime ou não.

A todas as pessoas que validaram a violência ou se questionaram: da próxima vez que reclamarem nas finanças, numa fila de supermercado, que excederem o limite de velocidade, que estacionarem mal o carro, que chamarem um nome a alguém na via pública – que deus vos ajude e no vosso caminho não apareça alguém que se afirma polícia ou militar à paisana e não vos sufoque até à inconsciência. Sabem porquê? Porque é ilegal e é crime. E rezem para que esteja alguém a filmar tudo porque senão a conduta será sempre «adequada e proporcional» – mesmo que não tenham feito nada. E estejam deitados inconscientes no chão.

1 Comment

  • eduricardo

    15 Maio, 2017 às

    Senhor Paulo Morais, se não sabe usar o verbo intervir, não o trate mal. Conjuga-se como vir e não como ver. Interveio e não "interviu".

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