Ser enfermeiro no país da austeridade, por Mário A. Macedo

Nacional

6H00. O despertador faz eco pelo quarto. Acordo num sobressalto, sem saber ao certo o que se passa. Faz já 3 semanas desde a última folga. O corpo já pede descanso, mas arrasto-me para fora da cama para mais um turno. Desde que a “crise” começou que somos cada vez menos, rara é a semana que não há notícia de mais um colega a fazer as malas e a emigrar para o Reino Unido, Irlanda, França, Suíça… Só no período 2010-2014 foram mais de 10.000 colegas a fugir de país que não oferece ordenado condigno, que não oferece carreira, que não oferece um trabalho… que não oferece um futuro! Destas dezenas de milhares de enfermeiros, apenas uma fracção foi substituída, cabe a quem fica trabalhar por 2 ou 3. Não deixa de ser incompreensível esta situação, uma vez que é na enfermagem onde encontramos uma das mais altas taxas de desemprego, superior a 50% entre os recém-licenciados!

Enquanto tomo café na mesa da cozinha, olho para o lugar reservado à minha mulher. Está vazio. Faz agora 48 horas que não a vejo. Também trabalha por turnos, também sofre da sobrecarga horária imposta. Ambos trabalhamos para o estado, mas não somos funcionários públicos. Há cerca de uma década que estamos no limbo. Não obstante, quando o patrão estado precisa de cortar, não tem prurido em vir aos nossos bolsos… Já quando se trata de ter as (que ainda resistem) benesses de ser funcionário público, nem por um canudo! Com a crise que nos foi imposta, o nosso agregado familiar perdeu cerca de 20% do rendimento. Para colmatar esta diminuição, coube-me a mim procurar e arranjar um trabalho extra. Neste extra, estamos todos na mesma situação. Apenas cerca de 10% da equipa é “da casa”, todos os restantes estão na mesma situação. Suportam um patrão com técnicas de gestão agressivas, sem o mínimo de respeito pelos trabalhadores nem pelos seus direitos de parentalidade, menos horas disponíveis para a família e para o descanso, a injustiça de ver o vencimento ser diminuído sem pré-aviso, ver colegas a ser despedidos com o nítido objectivo de meter medo a quem fica. E aguentam tudo isto não para ganhar mais, mas para ganhar o suficiente!

Depois de verificar onde faço o turno, enfio-me no trânsito com a preocupação de chegar a horas para render os colegas. Fazer noite é ingrato, nada saudável, e cada vez mais mal pago. Merece pelo menos ser rendido a horas. A afluência no serviço de urgências é enorme. Custa acreditar que há tanta gente doente. Mas este caos é de fácil explicação. Faltam recursos humanos, faltam cuidados de saúde primários, falta uma política de promoção de saúde; por outro lado temos uma população mais fragilizada por 7 anos de privações, em que até a comida e medicamentos foram alvo de cortes.

Somos poucos para tanto trabalho, andamos sempre a correr. Mal comum a todas as classes profissionais… Além de enfermeiros, faltam médicos, auxiliares e técnicos. Não faltam por não haver, faltam por falta de vontade em contratar.

Quem chega, vem a medo. Depois de anos a ouvir tantas notícias estranhas nos jornais é normal que assim seja. De facto a campanha para descredibilizar o SNS é muito bem feita, há que o reconhecer.

Ao fim de 8 horas de trabalho, perdi a conta do número de utentes que passaram por mim. Comi de pé em 10 minutos, bebi o café de penalti mal saiu da máquina e nem houve tempo para comentar o fim de semana futebolístico. O telefone toca, uma das colegas que viria para o turno da tarde afinal já não vem. Tem a filha doente. Como estamos nos mínimos, alguém da manhã vai ter que seguir turno. Como é óbvio, ninguém o quer fazer. Será a sorte a decidir. Fazemos papelinhos com os nossos nomes e o fado não me sorriu. Para cúmulo, logo vou ter que fazer noite no segundo trabalho, o que significa trabalhar 24 horas seguidas, e apenas voltar a ver a minha família 3 dias depois… Acho que me vou sentar para beber um café e respirar fundo!

*Blogger Convidado
Mário A. Macedo, enfermeiro

Nota de referência:
A luta de classes é o motor da História, e por isso é preciso ir oleando a engrenagem. A luta do Manifesto74 é feita com palavras. É por isso que aqui não há colaboradores, empreendedores e empregadores. Escrevemos trabalhadores, empresários e patrões. Nesta luta temos o nosso lado bem definido. Estamos com os trabalhadores e as suas famílias, com os explorados e oprimidos. É para estas pessoas que escrevemos. São estas pessoas que queremos escutar. Publicaremos aqui uma série de textos de profissionais de várias áreas onde simplesmente lhes pedimos que nos falassem da sua profissão, do seu trabalho, do seu dia a dia. As palavras, as reflexões, as propostas, as denúncias, as exigências são de quem as escreve. Que os seus testemunhos sirvam para esclarecer e alimentar o debate. Que as palavras acrescentem força à luta e com eles se fortaleça.