*apontamentos sobre o 2 de Março: Que se lixe a troika, o povo é quem mais ordena!

Nacional

2 de Março de 2013. Acordei depois de umas horas mal dormidas. Desde o fim de Janeiro que não parava um dia que fosse em casa.

Ao trabalho diário acresceu, à militância partidária e à normal participação em lutas e acções reivindicativas de vários movimentos sociais e da CGTP, a participação no Que se lixe a Troika. Todos me eram praticamente desconhecidos, mas, num ápice os rostos se tornaram tão familiares que os via com muito mais frequência do que aquela com que vejo família ou amigos.

Devo dizer que, de muitos anos que tenho de participação em associações de estudantes, movimentos sociais, etc, esta experiência é absolutamente inigualável.
Desde o primeiro dia em que apareci numa reunião numa colectividade em Lisboa que o que se lixe a troika entrou pela minha casa dentro. Entrou em mim e passou a ser uma espécie de carimbo – para o mal e para o bem.

As minhas noites começaram a passar-se entre uma série de gente que construiu o 25 de Abril de 74, gente que pela primeira vez saía à rua, gente como nós. Rapidamente começaram a chover ideias sobre o que fazer. Entre ideias que eram livremente faladas até ideias que apenas eram discutidas presencialmente, sentia que algo de novo estaria a ser construído. Um sítio onde sendo tantas – tantas! – as diferenças de opinião e de visão sobre o mundo, no seu todo, a alegria da construção nos tomava, mesmo após acesas discussões. Um sítio onde não preciso de dizer qual é a minha militância partidária porque ninguém me pergunta. Um sítio onde não sou sucessivamente questionada ou menorizada sobre as minhas opiniões por ser comunista. Ali, respira-se livremente e fala-se bem alto. Discorda-se, grita-se. E do caos nascem coisas que por mais tempo que viva estão gravadas na minha pele.

Até ao 2 de Março, o percurso pareceu longo. Pergunto-me se apenas terá passado apenas um ano.
Algures em Fevereiro acordei num domingo cheio de sol. Vesti o meu casaco do FC Porto com o único intuito de irritar algumas pessoas. Esperei pela minha boleia e foi um autêntico carnaval sair de casa. Escadote, tintas, pincéis… foi difícil, mas lá conseguimos. Chegámos a Campolide e começámos a espalhar as coisas. Logo chegou gente com lanche. Outros com mais pincéis. De repente éramos cerca de quarenta – eram homens, mulheres e crianças, cada um com o seu rolo, aquilo ali era uma festa, quem diz o contrário é tolo! – a pintar num muro palavras de luta.

Uns dias antes ou depois, não me recordo, juntei-me ao Exército de Dumbledore. Colámos um outdoor gigantesco, provocando todos os que saíssem dos transportes ali perto: o Povo é quem mais ordena? E não me esqueço do F. a despir-se em pleno metro para vestir umas calças. Nunca o tinha visto ou falado com ele e, no entanto, o à vontade permitia já intimidade.

Uma outra tarde de domingo sentámo-nos numa outra colectividade, na Graça. Preparámos tudo em segredo e (eu) à volta de copos de vinho tinto. Ouvíamos a carta ao neto do N. E falávamos com ansiedade daquela sexta em que se realizaria o debate quinzenal. Jantámos no meu indiano preferido e pelo meio quis casar a L. com um amigo meu. Fui para casa à gargalhada e com o coração a rebentar de alegria.

Chegada a sexta feira, estava tudo a postos. O meu coração batia com ansiedade por não poder estar ali. De repente, assisto em directo: a grândola é cantada nas galerias da Assembleia da República. A repercussão deste acto permanece, até hoje, não identificável.

Alguém inventa a palavra grandolada. Que se repete na espera aos ministros por todo o país. No Porto, põem o Relvas a balir a Grândola. Pouco tempo depois, Relvas demite-se.

(Por cá num lançamento de um livro tocam-me nas costas e dizem – é para rir!. Apanhada de surpresa não contenho a gargalhada perante a primeira que foi solta lá à frente. Pouco tempo depois, Gaspar demitia-se).

As noites passadas no meio de faixas, de cartazes. O ânimo dos desenhos e do grafismo do R. que são sempre elementos fundamentais na mobilização. E ainda por cima são fortes, são lindos e cobriram as ruas e encheram as mãos em tantos protestos.

Olhar para a I., a H., a C. e ver como estavam exaustas da noitada a colar cartazes.

Juntarmo-nos no Largo do Carmo, num abraço, e subir uma rua em direcção ao Camões e ver as lágrimas a correrem no rosto da L. ou as pessoas que se juntavam à passagem.

No dia 2 de Março acordei depois de umas horas mal dormidas. Ao meio dia estava junto ao N. a queixar-me das dores que nunca me deixam. Começam a chegar as pessoas. Ali ao lado estava a C. e o F. a darem cartão, pincéis e marcadores para que quem chegasse fizesse a sua faixa ou o seu cartaz. Olhei para o N. e perguntei: Achas que vem muita gente? Ele respondeu-me «Não sei».
Umas horas depois, em uníssono, o país gritava demissão.

Hoje, teoriza-se sobre o papel do Que se lixe a Troika. A sua submissão a interesses partidários. O formato das manifestações «tradicionais». Neste ano que passou rios de tinta internética correram criticando palcos, percursos, formas de luta.

De que nos serve, não sei. É algo que provavelmente nunca irei compreender.

O que compreendo é que isto se faz todos os dias. Às vezes com muita gente, outras vezes com pouca gente, muitas vezes com os mesmos. Sei que sem estes que estão sempre, a coisa não vai lá. Sei que há muitos anos que saio à rua e continuarei a sair, emocionando-me com uma bandeira erguida, um grito de luta ou com dores nos pés de tanto caminho feito. Sei que tudo o que fiz ao lado destes meus companheiros e dos meus amigos não foi em vão. Sei que amanhã (literalmente) a eles me juntarei para planear novas acções. Independentemente do nome que nos chamem, dos palcos que procurem, das teses que inventem – independentemente das discordâncias e apesar das concordâncias o Que se lixe a Troika quer cumprir o que exige, o que exigiram milhões durante o ano todo que passou. E eu também.