O bisneto de Maisanta

Internacional

As imagens repetiam-se uma e outra vez. Onde quer que ele estivesse, transbordava a terra de mulheres e homens com fome de justiça. Numa das vezes, recordo a velha que trazia consigo o incomensurável sofrimento a que toda aquela gente havia sido submetida durante décadas. E se não falo de séculos é porque felizmente ninguém é capaz de suportar a miséria mais do que aquilo que a genética nos permite. Mas eles não esquecem. Nunca esqueceram quem é que aos antepassados encheu as costas de vergastadas. Desde os espanhóis que pisaram as praias venezuelanas, há mais de quinhentos anos, aos heróis que arrastaram multidões e esmagaram a tirania, sabem-lhes os nomes na ponta da língua.

Aquela mulher levava consigo Guaicaipuro, o índio que liderou uma das primeiras revoltas contra os invasores, e resistiu durante horas ao inferno tão próprio daquelas latitudes. Ali bem perto, as tropas de Francisco Rodríguez del Toro haviam derrotado, em 1810, o exército espanhol. O homem que fora marquês e renunciara ao título para aderir às forças independentistas planeou a entrada na cidade de Coro para as nove da manhã. Os dirigentes do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) não tiveram a mesma amabilidade mas o gentio que se juntou num dos bairros mais pobres da capital do Estado de Falcón deu para constatar que nem as temperaturas mais agrestes fariam afastar os que sempre haviam sido marginalizados. De tal forma que os organizadores foram obrigados a retirar as grades que dividiam a multidão do palco.

O meu anfitrião era um ex-guerrilheiro que havia combatido nas montanhas da região. Ao nosso lado, com o mesmo nome que o mítico zambo que ali se insurgira em 1795, estava o filho do negro Rafael. José Leonardo Chirinos fora o filho de uma indígena livre e de um escravo africano que conduziu uma poderosa revolta constituída por negros, indígenas e mestiços e que após a derrota viu o seu corpo ser esquartejado. Mas a terra que fora regada pelo sangue dos que morreram pariu as Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), apoiadas pelo Partido Comunista da Venezuela, e em 1962, sob o comando de Douglas Bravo e Luben Petkoff, entre outros, surgiu nas montanhas de Falcón e Yaracuy a frente guerrilheira José Leonardo Chirinos.

Mas era o rosto daquela mulher que me fixava a atenção. Os sulcos que lhe marcavam a face pareciam trazer as batalhas de que me falava Rafael. De vez em quando, alguém rompia a calma e um rumor atravessava a massa humana que bloqueava agora toda as ruas e avenidas. Por razões de segurança ninguém podia saber quando chegava e a tensão acumulava-se a cada hora que passava. E para quem está habituado a ver a Guarda Presidencial como um elemento folclórico reservado para turistas que coleccionam fotografias do render da guarda, surpreendia-me ver os militares do corpo presidencial nos telhados não muito altos das casas cerrando punhos e saudando a população que o esperava.

E àquela que resistia nos meus pensamentos atribuía-lhe não só a gesta libertadora de Simón Bolívar como de Ezequiel Zamora. Todos conhecem o libertador de povos, o homem que abriu caminho à independência da maioria dos países da América do Sul. Mas poucos conhecem o insurrecto que incendiou o país com as ideias de terra para quem a trabalhasse. Depois da derrota do projecto de Bolívar, Zamora encheu as esperanças dos pobres e arrastou consigo entre milhares um índio guariquenho. Mas Pedro Pérez Pérez partiu para Ospino depois do assassinato de Ezequiel Zamora e deixou no ventre de Josefa Delgado a semente da revolta. O filho de ambos, Pedro Pérez Delgado, que ficou conhecido como Maisanta, tomou a bandeira do pai e levantou-se com os seus camaradas de quartel contra a ditadura do General Gómez. De armas na mão, os guerrilheiros acabaram derrotados e a semente do índio guariquenho morreu no cárcere aos 44 anos.

Tanta violência, tantas mortes e tanto sangue que, apesar de tudo, nunca abrandaram as ânsias de romper as amarras da opressão. Gerações inteiras de patriotas que deram a vida contra a conquista espanhola, contra a colonização e contra o capitalismo. Talvez fosse nisso que pensava quando um grito ensurdecedor irrompeu entre a multidão. Rebentavam foguetes por todas as partes. A maré vermelha com dezenas de milhares de mulheres e homens incendiou-se e não mais a pude ver. Ela havia desaparecido naquela indescritível tempestade humana que interrompera a descrição histórica do negro Rafael precisamente quando chegava Hugo Chávez. Então, agarrou-me com força, puxou-me para si e disse: «Bruno, te presento el bisnieto de Maisanta».