Violência e tortura policial – quando os sinos tocam

Nacional

Chamemos-lhe Duarte. Vive num bairro pobre de Lisboa. Duarte está desempregado há vários anos. Tem 20 anos e não tem qualquer subsídio ou protecção social. A mãe trabalha sete dias por semana, a limpar casas, de uma ponta à outra da cidade. Tem uma irmã pequena que adora. O pai, não me recordo o que faz.

A mãe dele conta-me que todas as semanas há rusgas no bairro. Muitas vezes atrasa-se porque a polícia entra nos prédios e não deixa sair de casa.
O Duarte cresceu a repetir aos pais que «a polícia e a justiça servem para nos proteger». Sexta à noite saiu com os amigos e foi até ao Bairro Alto. Beberam uns copos e um deles meteu-se com uma miúda.

Chamemos-lhe Marta. Estudava numa escola de ensino artístico. Tinha 16 anos. É de uma juventude partidária. Politicamente activa, já estava habituada a ver vários carros da polícia a rondar a sua escola – secundária. Eles diziam que por ser uma escola de «artistas» tinham todos «a mania».

Chamemos-lhe Pedro. O Pedro estava sempre nas manifestações. Um dia não voltou a casa para ir ter com os seus pais que já tinham regressado da manifestação. Ligavam-lhe mas o telefone estava desligado.

E então?

O Pedro, desapareceu, depois da manifestação. Já a regressar a casa, perto dos comboios, viu uma fila de polícia de choque que corria em direcção a todos os que se encontravam ali. Bateram-lhe nas pernas com o bastão e ele caiu. Arrancaram-lhe a mochila dos ombros e algemaram-no com fitas de plástico que lhe cortavam os pulsos. Tiraram tudo o que tinha consigo. Ficou dentro de uma carrinha quase uma hora sem saber para onde ia. Enfiaram-no numa cela, onde cabiam duas pessoas. Estavam 5. E mais 5 na cela ao lado e assim sucessivamente. Ninguém podia contactar os pais (eram todos muito jovens, um era menor). Ninguém podia contactar um advogado. Estiveram 4 horas detidos sem que ninguém soubesse deles. O pai do Pedro ligou-me em pânico. Ao chegar ao sítio onde estavam detidos, a polícia ameaçou deter-me porque eu insistia que eles tinham direito a contactar um advogado. Era de madrugada. Os pais e o avô chegaram. Por mais anos que passem não me vou esquecer da cara de cada um deles: o filho estava desaparecido. Ninguém sabia o que lhe acontecera. O avô, que foi um preso político durante o fascismo, não queria acreditar no que aconteceu.

A Marta era menor. Pintou um muro à frente da escola com palavras de luta. Estava com 5 amigos. Chegaram duas carrinhas e dois carros da polícia. Começaram aos gritos com eles e enfiaram-nos nos carros. Chegados à esquadra, a Marta e as suas amigas – só as raparigas – foram enfiadas em celas diferentes. Tiraram-lhes tudo, não puderam contactar ninguém. Foram despidas, insultadas, revistadas. Porquê? Andavam à procura de droga. Que não procuraram sequer nas suas mochilas. Ficaram detidas mais de três horas. Os pais foram chamados depois de tudo isto. No dia em que enfrentou um julgamento contra ela, a mãe dizia-me que não acreditava no que estava a acontecer. Lembro-me que a Marta vomitou e estava assustada.

O Duarte. O Duarte foi levado para a esquadra. «A esquadra da morte» chamam-lhe alguns. Foi colocado numa sala. Separado dos amigos. Despiram-no. Deitaram-no no chão com as costas para cima. Começaram a pontapeá-lo enquanto o insultavam. Diziam-lhe que abrisse as pernas para o pontapearem nas coxas. Ele tentava explicar que não fez nada. Continuavam a bater-lhe. Saía um vinha outro. Ele tentava dizer novamente que nada tinha feito. Continuaram a bater-lhe. Passaram as 3, 4, 5, 6 da manhã. Bateram-lhe ininterruptamente. O Duarte pediu que não lhe batessem na cara. Pelo menos a isso acederam.
Espancaram o Duarte e todos os seus amigos. A mãe ligava de manhã sem parar. O telemóvel estava desligado. Chegou a casa às 11h30 da manhã. Não se mexeu mais durante o dia. Na segunda foi ao hospital. Os braços estão inchados e pisados. Tem várias fracturas nas costas. Não consegue dormir porque não tem posição. As pernas estão todas pisadas. A mãe nem consegue olhar. O Duarte não tem dinheiro para um advogado ou para pagar as custas de um tribunal. Ainda assim tem que ir à segurança social (onde tem mais de cem pessoas à sua frente) para pedir apoio judiciário. Já foi pedir os papéis que a burocracia manda. Pediu uma máquina emprestada para fotografar as lesões. A mãe está com o coração apertado. Fala com amigas que lhe dizem que aquela esquadra, a do Bairro Alto, é assim. (é assim!!!)
O Duarte disse à mãe, «eu cresci a dizer-vos que a polícia e os tribunais existem para nos proteger».

Com a Marta e com o Pedro as queixas à Direcção Nacional da PSP foram arquivadas. As queixas-crime foram arquivadas. As queixas à Procuradoria Geral da República foram arquivadas (pior, até resultaram num aperto dos procedimentos). Só com a Marta lá houve um polícia que foi suspenso, num procedimento disciplinar instaurado pela Inspecção Geral. Mas nem se sabe qual é o agente nem sequer se esteve envolvido nas detenções. Mas que não foi ele quem a despiu e insultou não foi.

Todos os nomes são fictícios. Todas as histórias são relatos fiéis.
O Duarte foi torturado no dia 8 de Março de 2014. Continua quase sem se conseguir mexer. E sabe que não pode aparecer no Bairro Alto, principalmente depois de apresentar as queixas porque correrá o risco de não sobreviver. Como achou que não conseguiria sobreviver durante as várias horas em que o espancaram, pontapearam, puxaram cabelos, insultaram. 2014.