Partir ou ficar ou o apedrejamento moral dos desempregados

Nacional

Volta e meia somos brindados com doses cavalares da apologia do só-não-trabalha-quem-não-quer. Em geral chega-nos no pacote do empreendedorismo, desta chegou de assalto a um pseudodebate sobre a emigração portuguesa. Falo do Prós e Contra, mais conhecido como Prós e Prós, da passada segunda-feira. O tema era qualquer coisa como ficar ou partir, o que já de si fazia tender a discussão para pressupostos absurdos: um, a emigração como opção e não como condicionante; dois, criar falsos defensores de uma ou de outra situação; três, evitar discutir a emigração com seriedade. O resultado só podia ser o do apedrejamento moral dos desempregados que decidem ficar no país.

E tivemos então, como não podia deixar de ser, a abertura das hostes a cargo do inefável Miguel Gonçalves, ou, como alguém já disse, pastor da seita do empreendedorismo. Começou o Miguel por dizer que era um mito que as mentes brilhantes estivessem a sair do país. Disse-o apelando à seriedade do debate. Saca dos números – não há nada que confira mais seriedade a uma coisa que um bom conjunto de números. Zás! Toma lá só para veres que eu sei do que estou a falar! – só 11% dos 128 mil portugueses que emigraram em 2013 são licenciados. E acrescentou que todos os dias contacta com grandes génios e que se 11% são licenciados, 90% não são (ignoremos o erro de cálculo). Brilhou. Só lá mais para o fim do debate é que um dos intervenientes lá foi dizendo que 11% é mais ou menos a taxa de licenciados em Portugal. O que ninguém disse é que a faixa etária da população que tem menos licenciados não emigra ou emigra muito menos, os mais velhos e os mais novos. Os que emigram são precisamente os que se colocam no que se considera população activa e, dentro desses, aqueles que podem alimentar a expectativa de encontrar trabalho.

Depois lá veio a conversa do “eu trabalho 80 horas por semana!” multiplicada por vários participantes numa espécie de celebração do aneurisma cerebral como objectivo de vida, na crucificação do ócio, no desprezo pelo descanso e pelo convívio. Eu não leio, eu não vejo filmes, durmo pouco, não vou tomar café com amigos nem visitar a família, se tinha filhos esqueci-me deles, se tinha cônjuge já nem sei quem é, quase não tenho tempo para cortar as unhas e o cabelo, yeahhh! Sou um exemplo de português. É esta a ideia. 80 horas por semana são 11 horas e meia por dia, incluindo fins-de-semana e feriados. Se, num cálculo bastante apertado, a pessoa dormir 6 horas por dia, levar uma hora em transportes, meia hora para se arranjar e uma hora e meia em refeições (incluindo pequeno-almoço), só lhe restarão 3 horas e meia para todo o resto, incluindo ir a programas de televisão dizer estas coisas.

A bem da verdade é preciso que se diga que é possível viver assim. Há muita gente que vive assim. Pior, há quem trabalhe 11 horas e meia por dia e ainda tenha de trabalhar em casa porque não tem quem, por ele ou ela, cozinhe, limpe a casa, lave a roupa e a loiça e cuide dos seus filhos. Em geral, essas pessoas não dizem o que estes dizem: vale a pena, somos recompensados. Em geral, estas pessoas ganham pouco e não se sentem felizes. A diferença entre estes incansáveis empreendedores felizes e os derreados trabalhadores apáticos já Marx nos apontou há muito tempo, quando desenvolveu a sua teoria da alienação. O produto do trabalho do dito empreendedor não lhe é retirado, é sua propriedade e recebe pela sua venda, ao passo que a mercadoria produzida pelo trabalhador é-lhe retirada e a sua força de trabalho é vendida a baixo custo. A empresa é do empresário e se este não for um completo imbecil empenhar-se-á nela. Já o trabalhador será estúpido se vestir a camisola da empresa e não receber o mesmo que o seu patrão.

A meio do programa, e não retive bem porquê, desatou-se numa endeusação de Belmiro de Azevedo. Foram os momentos do elogio da vida austera e do self made man. Alguém disse que Belmiro de Azevedo leva uma vida frugal. Leva uma vida frugal!? Mas ele alimenta-se apenas dos seus produtos da marca é? anda de transportes públicos e vive num T1 da Reboleira? Veste roupa coçada e comprada nos saldos? Que mania esta a de considerarem que os ricos que não ostentam diamantes, não são gordos e não fumam charutos, são pessoas que levam uma vida simples! Que mania esta a de relevarem a imensa exploração a que sujeitam os seus trabalhadores em função de um estilo de vida mais modesto que possam levar! Belmiro de Azevedo, por mais frugal que possa ser, não passa pela humilhação por que passou uma operadora de caixa, de um supermercado seu, que não foi autorizada a abandonar a caixa para ir à casa-de-banho e acabou por fazer xixi pelas pernas abaixo enquanto ia facturando para o frugal patrão.

Das 80 horas de trabalho semanais desta gente fazem parte as idas à casa-de-banho, os cafés, as águas, a leitura do jornal, a conversa com os amigos e com a família, e todo um ritmo que lhes permite chegar ao fim do dia sem estarem cansados. Muito ao contrário da vida que, por exemplo, levava uma prima minha quando trabalhou numa charcutaria de um supermercado do frugal Belmiro: 8 horas de pé e tempos contados, quase ao segundo, para as necessárias pausas fisiológicas. Nem podia ter consigo uma garrafa de água porque isso contrariava as regras estéticas e de higiene do estabelecimento. Tudo isto para ganhar um pouco mais que o salário mínimo. E os self made man não se fazem assim, fazem-se a roubar.

Antes havia salários altos, disse um. Havia salários altos?! Altos? Estes tipos não vivem nem viveram no mesmo país que eu! Um salário menos baixo que outro não o torna alto.

Quem cria trabalho e riqueza são os empresários, disse outro. Ah, bom! Então o melhor é converter cada trabalhador por conta de outrem num empresário e veremos. O que não vale é achar que todos os que estão colectados como “empresários em nome individual” são realmente empresários. Quem apenas vende a sua força de trabalho e não tem um vínculo laboral não é um empresário, é um trabalhador em condições altamente precárias. Criam riqueza sim, mas não são empresários.

No meio desta diarreia mental, entrecortada de vez em quando por uma intervenção mais inteligente, chegou-se ao grau zero da sensibilidade: Dado o cenário em que nos encontramos – sobre o qual ninguém parece ser responsável -, o que interessa reter as pessoas? O que interessa ficar? Olha que grande ideia! Deixemos esta trampa e o último a sair que feche a porta. Desenraizemo-nos, Voltemos às Bidonvilles com os nossos filhos a brincar na lama em frente às barracas de madeira e chapa, deixemos que nos escravizem noutros idiomas, sejamos portugueses apenas em dias de festa e o mais folclóricos possíveis, falemos de Portugal como uma memória antiga.

Para rematar, volta o energético Gonçalves a pronunciar-se. Diz ele que o problema de muita gente é não saber procurar emprego. Os desempregados enviam respostas a ofertas de emprego ou fazem autopropostas não se dirigindo a uma pessoa em concreto e não conhecendo a organização das empresas a que se dirigem. Está tudo explicado: a taxa de desemprego subiu acentuadamente nos últimos anos porque os portugueses não investigam as empresas a que se candidatam. Os responsáveis da empresas ficam ofendidos por a eles se referirem de forma impessoal e pelos candidatos não saberem que a empresa não tem um departamento de recursos humanos e sim uma secção, ou apenas um responsável, e colocam de parte as cartas lendo apenas a primeira linha. São uns ases do recrutamento e sabem que o importante não é a competência profissional mas sim a bajulice militante. Que atrevimento o do engenheiro civil que terminou o curso com uma média de 15 valores e não se deu ao trabalho de investigar a quem se devia dirigir em cada uma das 50 empresas a que se candidatou! Que incompetência a do biólogo que, apesar de ter um doutoramento, não sabe que a empresa x tem um apenas um responsável e não uma secção de recursos humanos!

Se não estás disposto a trabalhar 80 horas por semana e ganhar 600 euros, se não te vais embora do país deixando para trás a tua família e amigos, se não colocas a forma da tua busca de trabalho à frente das tuas competências e da tua vida, se não roubas, a culpa da tua miséria é tua e só tua.