Violência policial na Cova da Moura: não esquecemos nem perdoamos

Nacional

«A primeira coisa que me vem à cabeça é a negação da humanidade aos africanos. Para aqueles agentes fardados nós não éramos pessoas.»

5 de Fevereiro de 2015, jovens são brutalmente torturados numa esquadra em Alfragide.

Às vezes o telefone tocava a meio da noite e a minha primeira expressão não era a de preocupação com algum acidente ou algum problema de saúde. A primeira ideia era «alguém foi preso, aconteceu alguma coisa». A tensão social e particularmente a atitude musculada da polícia, tornava estes telefonemas frequentes. Noites à procura de pessoas detidas sem se perceber bem onde, violação de todas as regras e leis – impedindo contacto com advogados ou pessoas de confiança – detenções para identificação sem sequer permitir a identificação testemunhal no local, práticas que se tornaram normais e curriqueiras e que nenhum juiz ousou condenar quando as pessoas, justamente, se queixaram. «Práticas normais», dizem. Como se fosse normal ser encostado a uma parede porque se é preto e levado para uma esquadra, como se fosse normal ser-se identificado pela polícia porque se participa numa manifestação que exige aumentos salariais, como se fosse normal ser detido porque se conhece a lei e se exige que esta seja respeitada.

No dia 5, foi diferente. Estavam pessoas a ser torturadas numa esquadra. E nem sequer interessa se fizeram alguma coisa ou não  – e não fizeram – mas aparentemente a tortura é justificável quando se trata de «criminosos» (que o são porque são pretos e vivem na Cova da Moura, nada mais interessa). Deles só se soube no dia 5, quando finalmente puderam falar com a sua família e amigos (depois de uma breve presença do advogado na esquadra). Três dias sem se saber como estavam ou o que lhes estava a acontecer.

Se eu mandasse vocês seriam todos exterminados. Não sabem o quanto eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda.

“Vocês têm sorte que a lei não permite, senão seriam todos executados“.

«”Esse aí é português.” E outro: “Não, ele é pretoguês”.»

“Se eu mandasse vocês seriam todos exterminados. Não sabem o quanto eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda.”

Mas, “a PSP actuou como o “previsto””.

A PSP, o Governo, o ACIDI (agora ACM) – todas as instituições falharam e continuam a falhar. Os mesmíssimos agentes acusados de tortura permanecem na esquadra e patrulham o Bairro da Cova da Moura. Cruzam-se com os que os acusaram. Com o mesmo ódio com que lhes marcaram a pele, o corpo e a vida em 2015. A polícia continua a invadir o bairro, a qualquer hora, de shotgun em punho, diante de crianças, de velhos – encosta à parede. É normal para eles e é normal para quem lá vive. Já me disseram que não se importam que lá vá a polícia mas que o faça quando não há crianças na rua. Já me disseram «que pena que não tenhas estado lá, eu não sou nada mas se calhar quando vissem que és advogada seria diferente, talvez não tivessem batido».

As associações falharam, deixaram de estar, de falar sobre o assunto. Todas as personalidades que se indignaram, à data, desapareceram. O Alto Comissariado para as Migrações nunca sequer lá pôs os pés para falar com ninguém ou intervir e se disser que o fez, mente. Todos viraram as costas, fingindo que não há racismo, não há violência, não há tortura. Serão talvez os primeiros a levantar a placa anti-Trump (pese embora justa, não deixa de ser vazia) e a autoproclamar-se bastiões da igualdade. Num mundo em que um jovem deixa de sair à rua porque não quer encontrar a polícia nem que que no bairro o acusem de por o bairro em perigo porque enfrentou a polícia. Num mundo em que um corpo fica desfigurado porque foi agredido, porque foram negados cuidados médicos (constando nos relatórios dessa noite que «caíram») e a marca é permanente. Num mundo onde dizem a um semelhante que deve ser exterminado, que não é pessoa.

Os que sempre lá estiveram, continuam a estar, lado a lado, numa luta que também é sua. Eu passei a estar apenas depois desse dia. E até hoje, de cada vez que os olho nos olhos, sinto-me esmagada pela sua resistência, pela sua capacidade de olhar em frente com esperança, pelo seu amor à vida, pela forma abnegada com que resistem, todos os dias, numa vida que ninguém devia ser forçado a viver. Não nestas condições, não desta forma abjecta. Em que centenas ainda vociferam que não há lugar para «aquela gente». Que ainda bem que aquilo lhes aconteceu. E de cada vez que ouço os relatos daquela noite, pergunto-me: que humanidade é esta que violenta, agride e se sente legitimada a tal, sem que nunca nada aconteça a quem exerce este domínio sobre o outro em razão da cor da pele, do sexo, da classe? Mas os olhos deles, quando contam novamente o que aconteceu, dizem-me que não desistem e não traem. Que não descansam. E que continuam a lutar.

Rosa, Chamam-te Rosa, minha preta formosa. E na tua negrura teus dentes se mostram sorrindo. Teu corpo baloiça, caminhas dançando, Minha preta formosa, lasciva e ridente Vais cheia de vida, vais cheia de esperanças Em teu corpo correndo a seiva da vida Tuas carnes gritando E teus lábios sorrindo… Mas temo tua sorte na vida que vives, Na vida que temos…Amanhã terás filhos, minha preta formosa E varizes nas pernas e dores no corpo; Minha preta formosa já não serás Rosa, Serás uma negra sem vida e sofrente Serás uma negra E eu temo a tua sorte! Minha preta formosa não temo a tua sorte, Que a vida que vives não tarda findar…Minha preta formosa, amanhã terás filhos. Mas também amanhã…… amanhã terás vida! (Amílcar Cabral)