Arrume a sua inteligência: o Observador tem um artigo para si

Nacional

Por que razão nos espanta ainda o Observador? Por que motivo nos abalançamos ainda, cheios de pasmo ou indignação, sobre “conteúdos” que nem sabemos muito bem se na verdade são escritos se vomitados? Lamento, mas não tenho resposta. Sei que me senti hoje particularmente “brindado” com a partilha ostensiva de um artigo que é meio textual e meio fotográfico e cujo título efectivamente promete: «Arrume os livros de História. Há 20 factos históricos que não nos ensinam na escola».

Lá prometer, promete, mas como diria um famoso sketch «vai-se a ver e aquilo é só estupidez». Ou pior. Ora, que factos históricos tão relevantes serão afinal esses que, na óptica do Observador, ou de quem escreveu tão reluzente pérola, nos obrigarão a «arrumar os livros de História»? Que nos terão escondido os professores e historiadores até hoje? Que novas descobertas científicas terão ocorrido entretanto? Que novos e reveladores documentos, inéditas teses, revolucionários ensaios nos estarão aqui escapar? Podemos desconfiar, podemos pensar até no crivo censório do antigo regime – causa maior da ignorância histórica actual – ou podemos mesmo não saber o que faltará de tão relevante ao nosso conhecimento sobre o passado e ao ponto de termos que deitar ao lixo, ou «arrumar», todos os nossos “livros de História”. Podemos não saber, mas o Observador sabe.

E então, de entre 20, cá vai disto: «Adolf Hitler era um artista, pintava quadros»; «foi Hugo Boss que desenhou os fatos nazis»; «houve um papa que escreveu um “best seller” erótico»; «a sociedade e estilo no Irão já foram semelhantes aos que existem no Ocidente»; «Kim Jong Il escreveu seis óperas»; «O Argentavis magnificens foi uma ave de rapina, provavelmente a maior que já viveu na Terra»; «Há uma maior diferença temporal entre o tiranossauro rex e estegossauro do que entre o tiranossauro rex e a actualidade», etc. Há outros “factos” mais, para além destes, mas desde já pergunto: só assim, apenas com a leitura destes sete, quantas bibliotecas já não terão sido imediatamente destruídas por Portugal e pelo mundo fora? Todas! Eu próprio acabo de despachar Herculano, Mattoso, Hobsbawm, Febvre, Bloch e por aí fora. A mim não me apanham mais nessa. Densos volumes que versam sobre supostos acontecimentos do passado da humanidade, mas que não têm uma única palavra, uma única referênciazinha, sobre corte & costura de tipos que se dedicavam à carnificina de judeus e oposicionistas.

Bem, há que acordar para a realidade. O Observador acaba de matar toda a pretensa grande historiografia de referência mundial com um artigo sobre aves de rapina, óperas coreanas e o estilo do Irão. «Arrume os livros de História», já! De nada importa que gerações inteiras de portugueses saibam zero sobre a Revolução Francesa e suas repercussões a nível global. De nada importa que a Idade Média continue a ser o porco no espeto das feiras “medievais”. De nada importa que os portugueses saibam pouco ou nada sobre participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. De nada importa que a História de Portugal continue a ser, para muitos, a vida dos reis e os achados dos navegadores. Para quê, se houve um Papa que decidiu escrever uma novela erótica?