Erro de Português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Oswald de Andrade, Pau-Brasil, 1925
Um poema escrito por um brasileiro, na década de 20, para dar início a um artigo sobre um romance angolano, escrito nos anos 80? Passo a explicar — Oswald de Andrade, aludindo a um registo de Pero Vaz de Caminha (23 de Abril de 1500), refere-se à chegada dos portugueses ao Brasil, durante uma tempestade, entre ventos de sueste e copiosos chuvaceiros. Ao “vestir o índio”, os portugueses estariam, literalmente, a agasalhá-lo, e, figurativamente, a impor a sua cultura, numa tentativa de civilizar os povos nativos. Depois, apresenta um cenário avesso, alternativo, que desconstrói a pretensa grandeza épica dos Descobrimentos através da inversão de papéis — “Fosse uma manhã de sol”, um dia bom, e o índio não seria submetido à dominação colonial; teria “despido o português” ou, melhor ainda, tê-lo-ia despojado da sua ambição usurpadora. Yaka, de Pepetela, começa pela tempestade, a violência colonial, e termina anunciando a alvorada soalheira que firmou a independência de Angola. Tendo como fio condutor a longa vida de Alexandre Semedo, personagem principal e colono de origem portuguesa nascido em Benguela, o autor faz um retrato brilhante e historicamente rigorosíssimo das várias fases da luta pela independência, em Angola, e a progressiva descolonização do imaginário de Alexandre. O patriarca da família Semedo é, de facto, “despido” de todos os seus preconceitos, aspirando, no final da vida, não à extensão do seu privilégio, mas à libertação do território angolano.
I. Notas sobre um autor-guerrilheiro
Pepetela é não só o pseudónimo literário de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mas o nome que lhe foi atribuído na guerrilha, após a sua adesão à luta armada, junto do MPLA, na segunda região político-militar, em Cabinda. Em Umbundu, significa “pestana”, um dos seus apelidos. Ao transportar, para a actividade literária, o seu nome de guerrilha na língua banda dos ovimbundos, que constituem um terço do tecido étnico angolano, está a dar-nos três dados fundamentais — 1) Pepetela é um autor-guerrilheiro cuja produção literária é indissociável da sua militância contra o fascismo e o colonialismo; 2) a introdução do Umbundu, nos seus romances, e a sua pertinente fusão com a língua portuguesa é um acto de resistência e corresponde, historicamente, a um processo de libertação face à cultura europeia — cuja imposição obstruiu o desenvolvimento e a valorização das culturas africanas — em prol da construção de uma identidade nacional angolana que resgatasse as tradições e as línguas nativas, rompendo com o cânone instituído; 3) a adopção de um pseudónimo numa língua marginalizada e censurada pelo colonizador português, durante séculos, e ainda não reconhecida, nos dias de hoje, como uma das línguas oficiais de Angola, distingue Pepetela enquanto defensor da preservação das diversas manifestações culturais e linguísticas do seu país, ciente de que a luta não findou.
Descendente de colonos portugueses e nascido em Benguela, tal como o fictício Alexandre Semedo, Pepetela é exemplo desse fenómeno de hibridização entre a matriz cultural africana e a influência europeia, numa Angola marcada por um longo período de guerra civil (1975-2002), e transcorrida por tensões políticas, culturais e étnicas. A obra pepeteliana ecoa, por seu turno, o compromisso do autor com um projecto de angolanidade aliado à emancipação do Homem e das Letras, pensando a realidade nacional desde o Império Lunda ao desencanto pós-revolução, sob perspectivas até então descuradas pela historiografia oficial. A 10 de Dezembro de 1975, data coincidente com o vigésimo aniversário do MPLA e apenas um mês após a consumação da independência, surge a União dos Escritores Angolanos, com o aval e a participação do então Presidente da República, Agostinho Neto. Para a sua fundação, ter-se-ão reunido 32 escritores, todos eles membros ou simpatizantes do MPLA, entre os quais se destacam José Luandino Vieira, Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Ruy Duarte de Carvalho e, naturalmente, Pepetela. É neste contexto que escreve Yaka e o publica, em 1984, respondendo à urgência de edificar uma nação soberana e uma literatura genuinamente angolana, de acordo com Rita Chaves (A Formação do Romance Angolano, 1999).
II. Como juntar os cacos de um corpo-nação
Tal como Gabriel García Márquez nos contou, na mesma década, a saga da família Buendía, Pepetela conta-nos a da família Semedo. Yaka, narrado a três vozes, não discorre sobre Cem Anos de Solidão, mas 85 de colonialismo. José Arcadio dá lugar a Óscar Semedo, um republicano degredado para Angola, e Úrsula, a dona Esmeralda, “a primeira branca a nascer em Capagombe”. A trama inicia-se em 1890 com o nascimento do protagonista, Alexandre, e termina em 1975, quando a sua morte física coincide, harmoniosamente, com o nascimento de um país livre. Assim, Yaka entrelaça a história dos Semedo com o desenvolvimento político e social de Angola, num engenhoso diálogo entre realidade e ficção.
«Esperava a chuva única, talvez sem água, que ia ligar a boca aos olhos e às pernas e ao sexo, ainda isolados em desconfianços. Se cumpriria então o augúrio lido nos intestinos do cabrito, que confundia ruído de chuva com música estranha, nova, mas tão nossa?»
Pepetela, Yaka, 1984
1890. Expansão portuguesa em direcção ao interior de África, em resposta ao Ultimato Inglês, na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885), que limitou a soberania e questionou a reivindicação histórica de Portugal sobre territórios vários do continente africano, obrigando à renúncia da margem direita do Zaire, com a excepção do enclave de Cabinda. Numa tentativa de restabelecer a honra do Império, enfraquecida pela ameaça inglesa, Portugal avança, ocupando as regiões do Bié e do Bailundo. Por essa razão, o projecto imperial português para o Planalto Central de Angola, a Revolta do Reino do Bié (1890) e a do Bailundo (1902-1904) vêm pontuar o primeiro segmento da obra de Pepetela, inaugurando um momento de intensificação dos conflitos bélicos. É este o pano de fundo para o nascimento de Alexandre Semedo, branco de segunda, cujo minúsculo corpo é deixado cair pela parteira, fazendo com que um pedaço de terra (angolana) fosse por si ingerido, simbolicamente. O autor introduz-nos a uma longa história de violência, hipocrisia e espoliação sob a perspectiva de colonos de origem portuguesa e através do conflito identitário do patriarca Alexandre, atravessando acontecimentos-chave como a queda da monarquia, a proclamação da República Portuguesa, a construção da ferrovia Lobito-Huambo, duas guerras mundiais, a ascensão de Salazar ao poder e o recrudescimento da repressão, destacando a resistência de nativos e escravos, seles e cuvales, contra as autoridades lusas, e as inúmeras revoltas que conduziram à guerra pela libertação nacional, num acto profundamente desafiador da historiografia oficial portuguesa, que calou, por tanto tempo, a verdadeira voz de Angola. Yaka, estátua que dá nome ao romance, é, justamente, a voz de um povo inteiro e desempenha o papel de mito unificador com propriedades oraculares, repositório que é da memória colectiva dos povos massacrados. É, também, quem narra a chacina levada a cabo pelos portugueses, vinga os escravos esquecidos pela História e chora os cadáveres não reclamados da chamada Guerra Preta — Yaka é a voz da descolonização de Angola.
“A Boca” (1890-1904), “Os Olhos” (1917), “O Coração” (1940-1941), “O Sexo” (1961) e “As Pernas” (1975) definem as cinco partes em que o romance se subdivide, como cinco partes dispersas de um corpo fragmentado, que busca, desesperadamente, a cola unificadora. Há uma voz, um grito, que busca o sentido da visão; um coração que teima em bater naquele convulso e fecundo planalto; umas pernas que anseiam desbravar um caminho só seu. Se o colonialismo desmembrou o corpo de Angola, para dele se servir ilegitimamente, a luta armada teria de reavê-lo inteiro, sarar-lhe as feridas, devolvê-lo à vida. Yaka narra a reivindicação secular de liberdade e união, numa amálgama portentosa de mitos, lendas e a mais crua das verdades, não almejando a substituição do registo histórico pela literatura, mas uma interdiscursividade pós-colonial, própria do realismo animista de selo pepeteliano.
A catártica e progressiva reunião dos constituintes deste corpo pátrio está intimamente relacionada com a evolução da postura de Alexandre Semedo, de tal forma que “A Boca” alude ao primeiro choro deste, após morder a terra angolana, ou, como ternamente lhe chama Pepetela, a sequência da “mordidela-beijo”. Alexandre é, por isso, uma síntese, uma metáfora viva da formação da nacionalidade e sua sofrida e multicolor fusão de culturas, em busca de uma harmonia entre a incontornável herança colonial e uma ideia de angolanidade que encabeçasse um projecto emancipatório. Cada uma dessas partes corresponde, também, aos sucessivos avanços dos nativos e à sua tomada de consciência, entre 1961 e 1975, sendo que 1961 (“O Sexo”) equivale a uma espécie de puberdade, à perda da inocência dos colonizados, e 1975 (“As Pernas”), ao seu desenvolvimento pleno, ou à idade adulta da consciência que, sendo plena, conduziria, inevitavelmente, à sua libertação face ao jugo português. Essa “música estranha, nova, mas tão nossa», profecia de Yaka, seria conquistada a pulso, com suor e sangue, pelas FAPLA, às quais se junta Joel, o revolucionário bisneto de Alexandre. Pepetela esculpe, de facto, belíssimas metáforas, resgatando a tradição oral africana, mas não com o intuito de maquilhar as sublimes cambalhotas da História; antes para as traduzir, inteiras e limpas, como só sabem ser as revoluções — aí reside a sua tão doce quanto acutilante integridade humana e literária. A sua é uma obra que recusa a passividade, estabelecendo uma relação dialógica e dialéctica com a realidade material e, nas palavras de Inocência Mata, compromete-se a “cerzir o corpo da nação nas teias da História”.
III. O sabor da terra libertada
Alexandre teve cinco filhos com a esposa, Donana, e uma filha fora do casamento, com a mulata Joana. Os seus nomes, que lembram as peças de Sófocles ou as homéricas epopeias, não são escolhidos em vão. As sucessivas gerações de colonos são descritas como burguesas, racistas e gananciosas, e vêem no território angolano uma mera árvore das patacas. Bartolomeu Espinha, genro de Alexandre, é o exemplo acabado do espoliador português, sobranceiro e boçal, disposto a cometer quantos massacres forem precisos, por um pedaço de terra. “Não tem escrúpulos, não tem cultura (…) Vai longe esse rapaz” — assim é apresentado. A apatia de grande parte dos membros da família Semedo e, portanto, de uma vasta percentagem de colonos de origem portuguesa, é uma porta aberta para as atrocidades cometidas pelas autoridades e viabiliza, calando, a repressão colonial. O sentimento de propriedade em relação à terra que ocupam é total e inquestionável, a violência contra os negros é vista com normalidade e, por isso mesmo, os avanços dos mesmos contra o colonialismo representam uma ameaça ao modo de vida parasitário dos colonos, do qual estes não queriam, evidentemente, abdicar. Em Yaka, a decadência do modelo colonial corresponde ao grande êxodo de colonos que fogem para Portugal (ou África do Sul) com medo do contra-ataque dos oprimidos. Por um lado, temiam as represálias, caso escolhessem ficar em Benguela; por outro, afligia-os voltar para um país onde não fossem senhores. Parafraseando Pepetela, os portugueses não poderiam tornar-se iguais àqueles que julgavam seus inferiores, e tampouco poderiam tornar-se inferiores àqueles que consideravam seus iguais. É, assim, posta a nu a protuberante hipocrisia, mergulhada num velho delírio de grandeza, que sugava a humanidade dos colonos. Todavia, entre várias gerações de mendacidade e escapismo, Alexandre e o bisneto Joel decidem ficar na terra que também é sua, do lado dos que combatem a besta colonial.
«Os intestinos do cabrito abertos e sanguinolentos escreviam, a chuva de música chegou.»
Pepetela, Yaka, 1984
1975. Alvorada. Após quatro gerações, alguém capaz de descodificar o olhar de Yaka e de compreender os seus desígnios. Alistamento de Joel no braço armado do MPLA, com o apoio do bisavô, que já teria, efectivamente, “despido” a sua pele espoliadora, no final de uma longa trajetória pessoal de descolonização. Ao partir para a guerra, ingressando numa odisseia pela libertação de Angola, Joel é rebaptizado por Alexandre com o nome Ulisses. É tardiamente que o patriarca se posiciona, sem reservas, do lado da justiça, porém, é com uma dignidade imensa que o faz, sugerindo que o bisneto responda ao “chamado da terra”. Joel, ou Ulisses, emerge como um duplo de Alexandre, um Homem-Novo que surge para redimir a família Semedo, no geral, e o bisavô, em particular. Tanto um como outro abdicam do privilégio em nome da liberdade. Se a fragmentação da família é uma alegoria para a desestruturação da sociedade colonial, verificável nas vésperas da independência, a morte de Alexandre Semedo simboliza, tal-qualmente, a morte do colonialismo, ainda que Pepetela não esqueça que tal acontecimento não pôs fim à desigualdade entre classes. A independência não é vista como o final de uma jornada de luta, mas como um ponto de partida. Aliás, a ideia de Fanon acerca dos movimentos nacionalistas africanos é omnipresente — desagregam-se no dia seguinte ao da independência, não transportando a consciência nacional para a esfera política e social. “Pode não ser para este século”, diria Alexandre, cuja sabedoria, nos últimos dias de vida, subentende uma simbiose entre si e a estátua. E eis que:
«A terra que a boca de Alexandre Semedo morde lhe sabe bem. É o cheiro do barro molhado pelo orvalho de madrugada e o som longínquo de badalos de vacas na vastidão do Mundo. Leva esse sabor e cheiro de terra molhada para cima da pitangueira, onde fica a balouçar, para sempre.»
Pepetela, Yaka, 1984
IV. Língua portuguesa, um organismo vivo
Uma flor rubra de acácia para os que deram a vida pela liberdade, os que tombaram de rosto erguido — mais uma definição que julgo ser acertada da obra de Pepetela. E é por isso que urge lê-lo, a si e a tantos outros autores desta extensa e colorida lusofonia, seja ela antropofágica, neo-realista, modernista ou animista.
Porquê? Porque é tão só impossível conhecer a fundo a história portuguesa sem consideração pelos autores africanos ou brasileiros, particularmente, os pós-coloniais, que adicionam verdade a relatos tantas vezes higienizados e dão, como ninguém, voz aos oprimidos. Sem os autores pós-coloniais africanos da lusofonia, quantas feridas abertas, quantas chicotadas, quantos massacres e quantas cicatrizes ficariam por contar? Quantas vozes permaneceriam silenciadas, quantas histórias individuais e colectivas cairiam no esquecimento? Quantas injustiças ficariam por denunciar para que nunca mais se repitam? E nós, que nos escudamos atrás de um português puro e original, bem como alegamos produzir uma literatura qualitativamente superior, do alto de uma putrefacta sobranceria europeia, quanto perdemos? A resposta é fácil — perdemos um universo de autores gigantes e obras ainda maiores, perspectivas diferentes e reveladoras acerca da nossa história comum, narrativas luminosas que não “conspurcam” a língua portuguesa, mas que lhe concedem uma vida e um caminho próprios, após os nossos antepassados a terem imposto, à força, aos povos nativos das ex-colónias. A língua de Camões é também a de Pepetela.
21 Fevereiro, 2025 às
Pepetela é, para mim, um dos escritores de língua portuguesa mais vibrantes. Nele, além do exercício da Arte que narra a história, está sempre o sentido da luta colectiva, onde cada um é todos.
Brilhante análise, Milene Vale.