Acordei estranhamente feliz. No telhado chilreiam pardalitos, pintassilgos e uma livre andorinha faz o seu ninho no topo da chaminé do meu prédio. Saio da cama num pulo e dirijo-me saltitante até às janelas da casa, abro-as todas e deixo entrar a brisa fresca que passeia pelas ruas. A vizinhança está diferente, ouvem-se risos e suspiros de alívio em todas as casas. O sol brilha melhor e a relva está mais verde, algo mudou.
Rapidamente entro num banho quente mas refrescante, um banho que me coloca em paralelo com este dia novo e belo, um banho que me limpa da sujidade do tempo que já passou e que não queremos que volte. Visto cores garridas e vivas, nas colunas o Gene Krupa está ainda mais ritmado e certo dos seus tempos, cada batida na tarola faz-me mover uma nova parte do corpo, faz-me até mover partes do corpo que desconhecia. Até o barulho perturbador do espremedor eléctrico de laranjas me oferece hoje música para os ouvidos.
Sumo de laranja, torradas com compota de framboesa e uma tigela de cereais para terminar, o pequeno almoço de campeão, o primeiro pequeno almoço desta nova fase de liberdade. Como rapidamente, mas saboreio cada golo do sumo, cada trincadela na torrada, cada pedaço de compota. A rua chama-me, a expectativa de observar de perto este mundo novo excita-me.
De repente, ao longe, começam a restolhar foguetes, ouvem-se fanfarras, línguas da sogra pontuam os silêncios e não deixam que a felicidade tenha pausas. Quase tropeço a descer as escadas do prédio, mas a partir de hoje não há lugar para desgraças, haverá sempre uma espécie de força suprema que nos fará pôr a mão no corrimão no momento certo, que nos equilibrará no momento imediatamente anterior à possível queda no precipício, que nos amparará no final deste dia, quando totalmente ébrios, regressarmos a casa depois dos devidos e merecidos festejos.
Nos edifícios públicos erguem-se orgulhosas as bandeiras nacionais, gigantes coros de crianças de olhos espertos cantam “A Portuguesa” com a mão direita na parte esquerda do peito, depois do último acorde, com as suas vozes gigantes mas ainda esganiçadas pela infância, soltam um contente “Viva Portugal!” Os seus pais, rebentando de orgulho pelo fruto do seu trabalho e pela afinação das suas crianças, soltam algumas lágrimas de emoção, de esperança, de fim de sofrimento. Os mais ousados pensam já no radiante futuro que a partir de hoje terão, nas novas possibilidades que se lhes irão apresentar, nos novos rumos que poderão traçar com confiança e determinação.
Hoje é sábado, mas os gerentes bancários parecem formiguinhas laboriosas no interior das suas sucursais. Preparam o futuro, preparam uma segunda feira que se avizinha caótica nos balcões, mas este é aquele caos porque todos esperavam, o caos da nova avidez de investimento. Afinal tudo correrá bem e de forma simples a partir de hoje, de hoje mesmo, o novo dia da nossa libertação.
Pum! Pum! Pum! Estalam as rolhas das garrafas de champanhe! Os honrados responsáveis governativos celebram com os seus, com a sua gente, afinal tudo lhes correu bem. O país está muito melhor, é uma evidência impossível de desmentir, é um facto consumado. No estrangeiro, milhares de portugueses e portuguesas compram o seu bilhete de regresso. Agora voltará a haver espaço para eles e para elas, para reverem a sua família, para irem todos os dias para as novas fábricas e lojas que se irão erguer da poeira.
Os jovens que desistiram de estudar já procuram pelos papéis de reintegração. Os idosos voltaram a ter dinheiro para comprar o passe social, o passeio de domingo à beira rio voltará a ser uma realidade semanal. Os desempregados são os mais felizes, rasgam os anteriores recibos de subsídio de desemprego, vão certamente poder abdicar dele e terão uma nova vida a partir de hoje, a partir de hoje mesmo.
Amanhã mesmo deixarão de haver listas de espera nos hospitais, a ciência vai descobrir a cura do cancro, da sida e das doenças que ainda desconhecemos. Será português o primeiro ser humano a pisar o chão de Plutão e é certo, certinho, que o Cante Alentejano não só será património imaterial da humanidade como um dos seus grupos vencerá o Eurofestival da Canção de 2015. Só por causa deste dia e da renovada esperança de quem vive e trabalha por aqui e daqueles que voltarão, o Brasil será de Portugal, com um hat-trick da trivela de Ricardo Quaresma venceremos a final do Campeonato do Mundo de futebol contra uma super-Alemanha que tentará por todos os meios subjugar-nos, mas os bravos lusitanos não se deixarão voltar a espezinhar. Justiça poética.
Com tanta euforia esqueço-me do almoço e do jantar, passei a tarde a olhar o céu, as poucas nuvens que passeiam pelo azul mas que continuam a formar imagens e sonhos. Vejo cifrões, corações, smiles bem desenhados e de repente um avião cruza o ar e traz consigo uma mensagem: “Olá Portugal, é este o dia novo do nosso mundo perfeito!”
A troika foi-se embora, cabisbaixa, porque fizemos tudo que estava ao nosso alcance para lhe mostrarmos quem manda aqui. A troika foi-se embora, taciturna, porque demos conta do recado e já não precisamos das rodinhas pequenas para andar de bicicleta. A troika foi-se embora, sorumbática, porque Portugal mostrou ser bravo, capaz e resiliente. A troika foi-se embora, birrenta, porque em Portugal empreendemos bem nesta unidade colectiva e nacional, porque soubemos mostrar a fibra de que somos feitos e o cimento de emoções que nos une uns aos outros.
17 de Maio de 2014, a troika foi-se embora, o país vive de novo livre, as pessoas voltam aos cafés e a abraçar estranhos sem nenhuma razão. É a felicidade de um povo, é a felicidade do admirável mundo novo que conquistámos com tanto esforço. As coisas estão a progredir, as coisas estão a melhorar. Defenestrámos a troika! Viva Portugal!
* Autor Convidado
André Albuquerque