2 Novembro de 1975, singela homenagem

Internacional

“A independência que é a minha força, requer a solidão que é a minha fraqueza.” P.P.Pasolini

Escrever sobre alguém e o seu trabalho não é fácil, às vezes porque se é redutor, outras vezes porque se torna difícil evitar excessivos juízos caindo-se provavelmente em adjectivações intempestivas e subjectivas. Escrever  sobre Pier Paolo Pasolini, ainda que breves palavras, não fugirá a estas dificuldades.

Sobre Pasolini há três aspectos gerais que desde já se sublinham. O primeiro prende-se com a sua multidisciplinaridade, ou seja, o vastíssimo conjunto de técnicas de exposição da produção e criação intelectual a que Pasolini recorre, sendo que aqui se destacaria, não hierarquizando, o cineasta, o poeta, o escritor(no seu passaporte a profissão escolhida era “escritor”) e o cronista. E ainda como segundo e terceiro aspectos, interligados entre si, a sua coerência e a sua liberdade, coerência na medida que os seus diversos trabalhos nos diferentes estilos sempre se ancoraram na mesma linha ideológica de profunda fundação humanista, e a liberdade que usou e ousou ter num tempo e num espaço, de uma forma destemida, corajosa e até chocante se se quiser.

Provavelmente a expressão de Pasolini mais conhecida, para muitos será a cinematográfica. Aí Pasolini atravessa diversos ciclos, desde os iniciais, ainda muito marcados pelo estilo neo-realista do pós-guerra italiano como Accattone ou Mamma Roma, outros ainda em parceria com outros autores como A Raiva já num estilo muito documental e como observador crítico da actualidade e das expectativas mundiais do seu tempo, outro ainda em estilo de reflexão filosófica, política e até teológica como em Passarinhos e Passarões ou Evangelho segundo São Mateus, e terminando no absolutamente chocante e explosivo Saló ou os 120 dias de Sodoma.

Em comum nos seus filmes o antropocentrismo seja sobre as grandes questões do presente quotidiano(o desemprego ou a habitação precária) seja sobre os problemas com que a Humanidade se debate(a guerra fria ou a ameaça nuclear por exemplo). As personagens são circunstanciais, nunca são o fim em si mesmo, vivem para o guião e não do guião, são apenas instrumentais para as questões sobre as quais Pasolini pretende intervir, denunciar ou apenas questionar. Ainda que em modos e contextos diferentes, Pasolini utiliza as personagens apenas como sujeitos individuais metafóricos para heróis colectivos ou então como meros porta-vozes das suas inquietações.

Passe a ligeireza e o simplismo que a subjectividade comporta(agravada pela ligeireza de alguma ignorância sobre o seu trabalho poético), consideraria que é enquanto escritor e cronista que Pasolini melhor expõe a sua criatividade, o seu pensamento, a sua crítica, e muito especialmente o seu compromisso ideológico, a coragem e o exercício da liberdade.

Em Rapazes da vida e Uma Vida Violenta, cronologicamente escritos no pós-guerra(finais da década de cinquenta), antecedendo por pouco no plano cinematográfico a realização de Accattone e Mamma Roma, Pasolini, num estilo muito próximo da abordagem e da estéctica do neo-realismo, realiza descrições das diversas expressões da vida suburbana e dos bairros que crescem nas margens das cidades industriais do norte de Itália, espaços de confluência de operários migrados do sul com outros fenómenos sociais como o lumpemproletariado, descrições das misturas culturais e tensões sociais que se colocavam a uma imensa massa humana marginalizada em diversos sentidos económicos, sociais, culturais, recém-chegada a cenários de pós-guerra e reconstrução. Pasolini utilizando a vida rude e a amoralidade dessa juventude retrata a exclusão económica, social e cultural que a opressão do desenvolvimento capitalista comporta.

Já em Petróleo(escrito enquanto vai idealizando Saló),  numa fase que a sua obra recorre a um estilo completamente diferente, muito directo, ultrapassando todas as barreiras, já distante de algum domínio e ponderação sobre os termos e as imagens que se criam, distante também de alguma subtileza típica do neo-realismo, Pasolini ataca ferozmente a hipocrisia da moral burguesa e do ambiente identitário burguês e cristão, nomeadamente sobre a sexualidade.

Noutro registo, já completamente diferente, há o cronista Pasolini que escreve em Tempo e no Corriere della Sera. Aqui, ao contrário do que por vezes acontece com outros, Pasolini continua igual a si próprio. Polemista sempre que entende necessário, seja por mote próprio ou em resposta, assume diferentes perspectivas sobre a vida política, social e cultural em Itália e sobre a actualidade mundial.

Enquanto cronista destacaria três aspectos em Pasolini. Um primeiro e absolutamente trivial que se prende com o belo texto de homenagem e solidariedade que escreve sobre o 1º Maio de 1974 em Portugal onde entre outros refere “o povo português festejou o mundo do trabalho – ao cabo de quarenta anos sem o fazer- com uma frescura, um entusiasmo e uma sinceridade absolutamente intactas, como se a última vez tivesse sido ontem”. Um segundo, sobre a forma destemida como se bateu em defesa de diversos temas de costumes como o aborto ou o divórcio, contra sucessivas acusações políticas(e até pessoais) dos meios reaccionários e conservadores. E terceiro aspecto e que é particularmente interessante porque revela não só a sua resistência ideológica mas também a sua batalha contra as aspirações burguesas e as suas formas de expressão, pegando nos confrontos reais entre a polícia(lembrando-nos de forma subliminar os tais miúdos cujos pais vieram do sul e que cresceram nas periferias) e os jovens esquerdistas nas cidades do Norte que descreve como “policias filhos de proletários migrantes do Sul agredidos por arrogantes filhos dos papás”. Pasolini escrevia o que pensava e o que sentia.

Pasolini foi brutalmente assassinado em 2 de Novembro de 1975. Muito mais, muitíssimo, se poderia escrever, descrever e criticar sobre o seu trabalho e o legado intelectual que deixou. Contudo para já vale a pena apelar à sua divulgação e lembrar todo o seu esforço, a sua criatividade e o seu longo trajecto de compromisso com os explorados e ofendidos, que comportando muita coragem provavelmente lhe terá custado a vida.

* Autor Convidado
Filipe Guerra