Não deixo de notar a subtil mensagem que, no turbilhão de aldrabices e mistificações com que temos sido brindados nos últimos dias (a somar às muitas outras aldrabices de todos os dias), no meio de opiniões ditas e parágrafos escritos é verbalizada. E que é a seguinte: a referências aos 40 anos de democracia no nosso país. A princípio pensei tratar-se de um erro de cálculo, de um arredondamento. Mas depois, e conhecendo a casta, António Barreto trouxe à luz a evidência quando afirmou que um Partido Comunista nunca tinha governado em democracia (ele que fez parte do VI governo provisório).
Para esta gente tão eloquente e opinativa o 25 de Abril de 1974 não fundou a democracia, o levantamento popular que se seguiu ao levantamento militar nesse mesmo dia não foi expressão da vontade do povo português, os dias e meses que se seguiram cheios de assembleias populares, manifestações massivas, resoluções com vista à melhoria das condições de vida, à restituição da dignidade e dos direitos políticos, o resgate pelo povo dos seus meios de produção, a celebração da liberdade, tudo isso não foi democrático. Para eles a democracia resume-se ao acto eleitoral e, ainda assim, só quando os resultados lhes são convenientes ou então, tentam mascarar golpes como o ocorrido na Ucrânia, e chamam-lhes revoluções. Aí sim já falam de vontade popular. Para eles, que encheram a boca de consensos, só vale a imposição. Atribuem às eleições legislativas a lógica do filme Imortais, “in the end there can be only one”.
Pouco lhes importa o que diz a Constituição da República. E até têm como seu principal espezinhador o próprio Presidente da República, aquele que disse jurar cumprir e fazer cumprir a Constituição, esse documento que diz que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Nem se importam com a incoerência de considerarem que a democracia começa com um acto eleitoral organizado por poderes, dos quais na altura tomavam parte, emanados da própria revolução do 25 de Abril que não consideram democrática.
Cavaco cospe “o superior interesse de Portugal”sempre que se dirige aos portugueses e considera que só ele e os que o acompanham são iluminados para definir esse interesse e espezinha assim, mais uma vez, a lei fundamental quando ela diz que “O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição.”
Durante 48 anos foi Portugal governado por gente que tudo fazia “a bem da nação”. Até que chegou o “o dia inicial inteiro e limpo”.
Novos dias iniciais inteiros e limpos precisam-se, pouco nos importaremos com a democracia distorcida e diminuída que eles concebem, arrancaremos da barriga da terra o poder que há cerca de 41 anos e meio ao povo foi dado pelos capitães progressistas.