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Internacional

Quando se nasce junto ao mar, em terra de pescadores, sabemos bem como é viver com o medo do mar, que, de tempos a tempos, enterra vidas sem dó nem piedade. Aprendemos, antes de mais, a respeitar o mar e ainda mais aqueles que dependem dele para viver. Em Portugal, onde nos fartamos de exaltar feitos marítimos, temos este país inclinado para o mar, que há de ser a nossa desgraça, enquanto não olharmos para dentro e percebermos que as assimetrias não são entre Lisboa e Porto, mas sim entre Lisboa, Porto e o resto do país. Mas voltemos ao mar.

O jardim

Em 2002, os Asian Dub Foundation lançaram uma música chamada Fortaleza Europa, Fortress Europe, no original. A expressão deriva da propaganda da II Guerra Mundial, usada pelos nazis, que pretendiam selar hermeticamente todos os territórios que ia conquistando. Num dos versos da letra, pode ler-se “You bombed it out, now you’re telling us go home (…) You don’t like the effect, don’t produce the cause“. Em tradução livre, diz qualquer coisa como “bombardearam-nos, agora dizem-nos para voltar a casa (…) se não gostam do efeito, não produzam a causa”. Anos mais tarde, os Asian Dub Foundation teriam ainda mais razão, depois das intervenções da UE, NATO e EUA na Líbia e na Síria, particularmente. Em ambos os casos, com o acordo de uma parte da esquerda portuguesa. Esta vontade que alguma esquerda, radicalmente ao centro em matéria internacional, tem de se imiscuir em assuntos de Estados soberanos ultrapassa-me, confesso. Já vamos no ponto de defenderem o envio de armas para a Ucrânia, sem que alguma vez tenham feito esse tipo de apelo para outros conflitos. São as vantagens de quem vive no jardim europeu, cercado pela selva a sul e a leste.

Eurocentrismo

Este eurocentrismo, que vem também de alguma esquerda, leva-nos a crer que temos o dever moral de intervir, seja de que forma for, na forma de organização social, política e económica de qualquer Estado. Já vimos este filme há 500 anos, quando o fizemos em territórios encontrados por europeus. Achámos que não podiam rezar ao sol mas a uma cruz, que deviam envolver-se em camadas e camadas de tecidos mesmo vivendo sob temperaturas escaldantes. Do alto do privilégio de termos nascido na parte menos pior do capitalismo, há quem não consiga conceber que se pode viver de outra forma, com outros valores, crenças e visões de felicidade e realização que não as nossas. Achamos que os povos fora do eixo euro-estado-unidense são incapazes de, se assim o desejarem, organizar-se, resistir e derrubar qualquer que seja o poder opressivo que os subjuga. A suposta superioridade civilizacional está tão cravada em nós como o machismo ou o racismo. É-nos ensinada nas escolas e perpetuada, todos os dias, em filmes, programas de televisão ou notícias.

Os invisíveis

Entre 2014 e 2021, morreram no Mediterrâneo, pelo menos, 24.400 pessoas. Hoje, serão mais de 26.000 vidas de que não nos interessa falar, porque vêm de África. Estamos tão habituados a ver África como um continente que morre à fome que, se morrerem afogados, já não nos faz piscar os olhos. Dos jornais portugueses, só o Jornal de Notícias traz a morte de, pelo menos, 79 pessoas em mais um naufrágio no Mediterrânio na primeira página. Podemos imaginar como seriam as primeiras páginas dos jornais europeus se morressem 79 pessoas a atravessar o Sena, o Tejo ou o Tamisa. A morte é mais inevitável para uns do que para outros. E aceitável. E já nem pensamos muito nas vidas. Dizia há dias Azeredo Lopes, na CNN, que, quando falamos de material militar perdido na guerra da Ucrânia, estamos a falar de vidas que estão dentro desse material. Que quando se fala em tanques Leopard destruídos, e nos centramos em material bélico, nos esquecemos que dentro desse material estão pessoas. É preciso mais material? São precisas mais pessoas. É a desumanização em curso.

Afogados na areia

Um dos níveis da tragédia que se vive para atravessar o Mediterrâneo é o facto de só conhecermos os que chegam à Europa e uma parte dos que morrem no mar. Falta conhecer o número daqueles que morrem ao tentar atravessar o deserto do Saara. Dizia um refugiado, num documento da ONU de junho de 2022, que o “Saara está cheio de corpos eritreus”. Para os refugiados eritreus, estamos a falar de mais de 5.000 kms de travessia no deserto, para depois se submeterem ao terror do mar para, muitas vezes, quando lá chegam, serem recambiados para os países de origem ou para a Turquia, essa democracia exemplar a quem a UE paga para receber os indesejáveis. Ninguém consegue saber ao certo quantos morrem pelo caminho. Mas, se não nos interessa os que morrem com água nos pulmões, também não há grande curiosidade em torno dos que os enchem com areia. Refugiados que chegam ao Mediterrâneo vindos da Eritreia, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia, Quénia, Uganda, República Centro Africana, Níger ou Chade, entre outros, dispõem-se a atravessar um deserto e um mar em busca de sobreviver. E nós, no nosso jardim, cheios de humanidade que nos brota pelos poros, fechamos as portas.

As redes e as palavras

Há, evidentemente, redes que beneficiam com estas rotas. E o combate pode e deve ser feito a quem se aproveita do desespero que é necessário para que alguém decida fazer mais de 5.000 kms para sobreviver. Mas não podemos fazer de conta que nao há responsabilidade do eixo euro-estado-unidense nos conflitos e na miséria em que essas pessoas sobrevivem. A primeira forma de sacudir responsabilidade é adotar, por exemplo, uma linguagem que diminui a carga emocional sobre quem pretende chegar à Europa. Eu recuso chamar migrantes a refugiados ou a considerar que quem foge da fome e da miséria, das alterações climáticas, seja apenas um migrante. Está na altura de as Relações Internacionais e o Direito Internacional reverem o conceito de refugiado, que se encontra estabelecido na Convenção de Genebra. O conceito de “pessoa deslocada” tem de ser reajustado, atualizado e incluído no dos refugiados. Uma coisa é certa: a definição de “migrantes”, para descrever estas pessoas, é errada conceptual e factualmente. Mas dá um certo jeito que não sejam refugiados. Imagine-se, a civilizada Europa, recusar refugiados que fogem do pior que o ser humano é capaz de fazer.

 Setenta e nove

Até ao momento, foram encontrados 79 corpos sem vida no naufrágio que ocorreu ontem. São 79 ervas daninhas a menos no jardim europeu, que ou bem que recebemos, de braços abertos, todo o dinheiro de criminosos de colarinho branco, independentemente da nacionalidade, origem ou cor da pele, ou acolhemos os que fogem desses mesmos criminosos. Nós, europeus, que nos indignávamos com os muros de Trump, somos indiferentes ao fosso que se foi cavando, ainda mais fundo, entre a Europa e África. São mais 79 que morreram à nossa porta, empurrados para debaixo do tapete. Nem na coragem perante o mar os vemos como iguais.

Break out of the detention centers
Cut the wires and tear up the vouchers
People get ready it’s time to wake up
Tear down the walls of Fortress Europe

Asian Dub Foundation, Fortress Europe