A locomotiva da História saiu do apeadeiro

Nacional

“A primeira semana é a que mais custa”. A promessa é de Olinda Gonçalves, preparadora, embaladora, lutadora, “por isso é que até já disse aos colegas: quando houver outros trabalhadores como nós, eu quero estar lá com eles na primeira semana”. Esta é a história de como 130 trabalhadores dos bares dos comboios venceram ministros e patrões, salvaram os postos de trabalho e se fizeram heróis das suas próprias vidas.

54 dias, 54 noites. Sem salário nem emprego, abandonados pelo governo. Acampados à chuva e ao sol, ao frio e de noite, dia após dia, sob o açoite do vento. “É duro”, explica Olinda, “casais com filhos pequenos a chorar porque não tinham nada para lhes dar de comer. Eu chorei muito. Lá [no acampamento] não chorava, para não dar parte fraca. Mas olha, isto podes escrever aí em letras grandes: EU NUNCA PENSEI EM DESISTIR”.

Santa Apolónia antes ser só estação era só Santa (padroeira dos dentistas como já adiante se verá) e antes de ser só santa era só uma mulher da cidade de Alexandria do século terceiro que não desistiu. Por desobedecer às ordens do imperador Décio arrancaram-lhe todos os dentes da boca. A cada dente perguntavam-lhe se desistia e Apolónia, golfando sangue, na pronúncia possível, devolvia-lhes, em letras igualmente grandes, «NUNCA». Tudo isto são coincidências à parte, claro, como aliás não consta que tenham estes trabalhadores acampado aqui em Santa Apolónia por neste mesmíssimo lugar já ter também acampado, em 1147, Afonso Henriques, primeiro de seu nome e arriscando ser o último, abandonado que foi por reis, papas e cruzados. É em tendas, desde então, que se planeia sempre a conquista dos palácios.

O nosso movimento precisa de novas épicas: histórias de coragem que, se sopradas em corações derrotados, acendam de novo a esperança na vitória; vento montado em sílabas que ajude quem só vê merda à sua volta a imaginar um mundo que ainda não foi criado; canções que não cantem apenas os heróis que dormem nos covais, mas também os que dormem horas a menos em colchões baratos, os de carne e osso, os da nossa terra, os do nosso emprego, os que, mesmo nas situações mais desesperadas, ousaram lutar pelo que é justo e certo.

O magnetismo dos exemplos, sejam eles do Che, com os olhos postos nas cordilheiras, do Álvaro, a prometer aos juízes que um dia serão eles os réus, ou da Conceição, fortaleza humana que, ao contrário de Al-Usbuna, não houve cerco que vencesse, é o mesmo destes trabalhadores a invadirem ministérios até serem ouvidos, a bloquearem linhas férreas com os próprios corpos, a dormirem e a sonharem sob um tecto mais alto que o mais alto zigurate, a começarem greves que ninguém se sabe quando acabam, a saírem da bancada dos espectadores da história, a entrarem definitivamente como actores no palco, senão veja-se:

“O que é que mais me surpreendeu?” ecoa Olinda, “Olha, ver como o nosso povo é bom. Como há tanta solidariedade. Eu não sabia. Miúdos da idade do meu filho a irem lá dar-nos comida, companhia, alento. A dizerem-nos «estamos do vosso lado». Ver que vale a pena lutar. Porque sem luta nada acontece. Se não lutássemos, estávamos todos no desemprego. Quem desaparece, esquece. Isso podes ter a certeza. É preciso é as pessoas estarem unidas, conhecerem-se. Olha, eu conheci melhor colegas nestes 54 dias do que em 9 anos. Conhecia-os do trabalho «Olá bom dia», mas agora sei quem eles são. A partir de agora estamos juntos. Portanto, olha, ponham-nos os olhos em cima e força, a lutar pelo que é nosso!”.

Portanto olhem, historiadores e académicos, levantem as canetas e arrebitem as orelhas, escrivães da puridade e cronistas das eras, que tem a palavra Cláudio Ribeiro, trabalhador da Apeadeiro 2020, sindicalista, lutador do nosso povo: “Isto não serviu só para mantermos os nossos postos de trabalho, serviu para termos mais unidade. Demos muito de nós. Foram três meses sem receber. Foram manifestações à frente do Ministério das Finanças, à frente da CP, à frente da Infraestruturas de Portugal, à frente da Apeadeiro 2020. Uma coisa assim só foi possível com o apoio do sindicato, com muita entre-ajuda. Por exemplo, as famílias mais carenciadas tinham sempre prioridade: os bens de higiene, os bens alimentares, o que houvesse, eram sempre primeiro para elas. É preciso conhecermo-nos, confiarmos uns nos outros”.

Não há resistência num bairro de vizinhos que não se conhecem. Não há luta que vença quando os colegas não se preocupam uns com os outros. Temos de reaprender a dizer bom dia às pessoas do nosso bairro; temos de usar as redes sociais não para nos isolarmos mais, mas para construir redes de solidariedade, compromisso e reconhecimento; temos de arranjar tempo para conversarmos com os nossos colegas até sabermos como é a vida deles, até reconhecermos quando estão tristes e podermos perguntar porquê. Temos, no fundo no fundo, de construir a confiança da nossa classe em si própria a partir da unidade básica da nossa vida: o tempo. Temos de ser como a Olinda e o Cláudio.

“Mantivemos os postos de trabalho. Vencemos, com luta e perseverança, mas a luta ainda não terminou”, explica Cláudio, “Nós trabalhamos dentro dos comboios da CP. O serviço é prestado à CP. É um serviço público necessário. Que sentido faz não sermos trabalhadores da CP? Porque havemos, de dois em dois anos, de estar com a corda na garganta sem sabermos o que nos espera?”

É “estranha, amarga e doce” esta vitória, sintetiza José Lucas, Assistente Principal da Apeadeiro 2020 para quem “a luta vai ter de continuar, mas já não estamos na mesma paragem”. É que, como sentencia Maria José, Chefe de Bordo da empresa, “A CP aprendeu a lição: se se metem connosco, atenção: já sabem que vamos até às últimas consequências”.

Precisamos de mais disto: falar grosso com relâmpagos na voz, aos patrões, e aos ministros. Virar o medo ao contrário. Pô-los no lugar. Tê-los no lugar. Não excluir nenhum método só porque não é costume. Ousar vencer e não deixar ninguém para trás. Este comboio ainda não saiu da primeira semana da História, que é a que mais custa, mas a Olinda vai lá estar connosco.