Feminismo Liberal, Feminismo-L’Oréal

Nacional

Façamos a regra de três simples – se, como disse Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, o que será o feminismo sem ela? Um equilíbrio um tanto mafioso entre a manutenção do sistema capitalista e não fazer a depilação; acabar com a desigualdade, mas só um bocadinho; qualquer coisa entre um hobby e um estado de espírito, ou, mais recentemente, uma parceria da marca L’Oréal Paris com a ONG Right to Be. Pois não haveria certamente melhor parceira do que a maior empresa de cosméticos do mundo, no combate ao assédio sofrido pelas mulheres em locais públicos. Portanto, a ver se nos entendemos: nadando em lucros milionários, a L’Oréal Paris amanheceu generosa e decidiu começar uma acção de formação gratuita (vejam só!) para acabar de vez com o assédio. Sob a condição de poder continuar a explorar as suas trabalhadoras, naturalmente. E sem o relacionar com qualquer outro problema social, como é óbvio, que isso já era demais. É disto que o feminismo liberal vive, enquanto as mulheres reais, as que trabalham, continuam a sofrer na pele a brutalidade do capitalismo selvagem, que este ajuda a perpetuar. 

Clara Não, ilustradora e agora cronista no Expresso, publicou, há semanas, um vídeo em que denuncia, e bem, o medo que muitas vezes sentimos ao andar na rua, o cuidado na escolha da roupa com que saímos de casa e a revolta que tais experiências alimentam, entre as mulheres. Eis que depois, nem tarde nem cedo, esclarece ao que vem. Surpresa das surpresas – é um vídeo de publicidade a essa malfadada formação online, que vende como se da solução dos problemas do mundo se tratasse. Mas, note-se, traz as pontas bem hidratadas. Como uma boa feminista liberal – quase profissional, por esta altura – promove aguerridamente a luta contra o assédio, mas não o faz de graça. Era o que faltava. Quanto ao que escreve no Expresso, corrobora as suas teses com intriga insubstancial entre estrelinhas da cultura pop, mas, curiosamente, nunca lhe ocorreu dar antes palco às mulheres cujas mãos fazem o mundo avançar. Utiliza pretensiosamente o jargão do “empoderamento” e do “patriarcado” como forma de se autopromover, muito se debruçando sobre relações tóxicas e padrões de beleza, mas nunca sobre trabalho ou exploração. Não desfazendo da crueldade dos primeiros, contra os quais também devemos reunir esforços, como é possível ignorar os segundos? A resposta é simples e a táctica é astuta: o feminismo liberal vive muito bem com o sistema capitalista e suas contradições. Em boa verdade, só não sobrevive sem ele, apostando ainda em distrair as mulheres dos seus problemas mais gritantes e estruturais; em algemá-las à futilidade das colunas cor-de-rosa para que não se organizem; em ter como bandeira as liberdades individuais em detrimento da libertação de todas as trabalhadoras. O feminismo liberal quer as mulheres bem atentas às acções de formação de empresas multimilionárias para que se esqueçam da desvalorização do seu salário; para que se convençam de que, com o champô certo, serão enfim emancipadas. Mas nem todos os cosméticos do planeta são capazes de camuflar tanta hipocrisia.

Noutros assuntos, também a dupla Fado Bicha, cuja irreverência é inegável e não se põe aqui em causa, publicou uma fotografia, com o propósito de promover o novo single. A sua legenda é concluída com a exclamação “VIVA AS PUTAS!”. Ora, além de promoverem o dito single, promovem também uma série de outras coisas que interessa aqui enumerar, tais como a glamorização da miséria das mulheres em situação de prostituição; a bafienta confusão entre liberdade sexual e não ter o que comer; o branqueamento criminoso das violências a que estão sujeitas mulheres e meninas, traficadas para esse fim, enquanto esta dupla procura o sucesso gritando vivas à exploração sexual dos seus corpos, mais marcados pela fome do que pelo livre arbítrio que este feminismo-L’Oréal prega aos peixinhos. “Não iríamos este ano nem teríamos ido noutro ano” foi a resposta que deram, em 2022, quanto à possibilidade de actuarem na Festa do Avante!, pois, às tantas, na Festa, que dizem ter um carácter demasiado político, a luta não é um traço de personalidade ou uma palavra esvaziada de significado. Mergulhar em glitter a miséria alheia, para a tornar mais instagramável, também não resolve problemas. E mais ainda, é, com ou sem intenção, um acto profundamente cúmplice do capitalismo que nos sufoca; um acto cuja insensibilidade perante a pobreza extrema só serve como espectáculo de entretenimento ao capital monopolista, que não afronta nem confronta, já que apenas exsuda o conforto despreocupado dos seus protagonistas. 

Quando a intrépida Clara Zetkin propôs, na 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhaga, em 1910, a celebração do Dia Internacional da Mulher como uma jornada de luta anual, fê-lo não só pelo direito das mulheres ao voto e pela igualdade entre sexos, mas pelo socialismo. Sabendo, como ela, que só a luta de classes acabará consequentemente com a desigualdade e a exploração; que no capitalismo nunca seremos plenamente livres; que dia 8 de Março não é dia de oferecer caixas de chocolates e ramos de flores, mas de sair à rua e lutar, não deixaremos passar quaisquer avanços cínicos de um feminismo burguês que descarta a luta de classes, substituindo-a por falácias ou diversões.

À data da sua morte, em 2017, Liliane Bettencourt, herdeira, desde 1957, da fortuna da L’Oréal Paris, era a mulher mais rica do mundo, de maneira que não só a sua preocupação relativamente à luta das mulheres é questionável, como a sua obscena riqueza dependia da continuidade da exploração capitalista. A luta das mulheres é uma luta seriíssima que se insere na luta de classes e que não se vende. Tudo o resto não passará, precisamente, de cosmética; de um penso rápido que tenta, sem sucesso, esconder uma gangrena do tamanho da Terra. O feminismo liberal e suas finas manobras de distração não são mais que uma ferramenta que o capital utiliza contra as trabalhadoras. Podem até contratar modelos plus size para os seus anúncios publicitários a conjuntos de lingerie; podem escolher uma mulher negra para ser rosto de uma qualquer campanha; podem vender t-shirts com estampados “feministas”, mas estas serão sempre produzidas graças à força de trabalho das mulheres que exploram. A famosa t-shirt, à venda no site da Dior por 750 dólares, que reza que “we should all be feminists”, é exemplo disso mesmo. Se tivermos 750 dólares (mais portes!) para esbanjar numa t-shirt, podemos até espalhar a nobilíssima mensagem. A outra t-shirt, a que diz “this is what a feminist looks like”, da rentável parceria entre a marca Whistles, a revista de moda Elle e o grupo The Fawcett Society, produzida em série numa fábrica nas Ilhas Maurícias com recurso a trabalho escravo, é outro fiel retrato do modus operandi deste capitalismo que monta rebuscados sistemas de exploração para fingir importar-se com a emancipação da mulher. É desta forma que feminismo sem luta de classes é andar em círculos e nunca em frente; é estampar lemas em t-shirts para que não se oiçam em uníssono nas ruas; é dar novas roupagens à opressão, com o fim último de fortalecê-la. 

2 Comments

  • Jorge Nunes

    10 Junho, 2023 às

    Talvez seja um pouco daquilo que Yolanda Díaz do partido «Sumar» está a fazer em Espanha. Diz querer vir a ser a próxima presidente mulher de Espanha e, ao mesmo tempo, quer ajudar a Ucrânia, dando o seu apoio à NATO e a Zelensky e os seus bandidos da USB.
    Ilone Belarra e Irene Montero do «Podemos» (tão apreciado pelo «Livre» e «BE») também reivindicam mais direitos para as mulheres e transsexuais, ao mesmo tempo aplaudindo o discurso bélico de Zelenski no parlamento espanhol. Ou seja, falam muito na televisão sobre assunto como «feminismo, transsexualidade, direitos para os animais, mudanças climáticas», mas depois vemos os mesmos farsantes a prestar todo o seu apoio a Nazis ucranianos, dando o seu maior contributo, se necessário for, com um voto a favor no Parlamento.

  • Maria Gomes

    5 Junho, 2023 às

    Completamente de acordo com o autor do artigo. As grandes marcas apenas o são pela exploração das crianças, das mulheres e de todos os anónimos que contribuem com o seu trabalho escravo, para a manutenção do capitalismo mascarado de defensor dos que não têm voz.

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