O fascínio pela decadência do império

Internacional

As eleições nos EUA são sempre um momento de agitação mediática, com comentadores e jornalistas a fazerem intermináveis edições especiais que nos explicam aquele espetáculo degradante que, desta vez quase seria entre dois loucos senis, mas foi entre um louco senil e uma representante da nova geração de líderes dos EUA, que em nada difere das gerações anteriores. Um fascínio pela decadência, fazendo de banda do Titanic enquanto o navio vai ao fundo. Os EUA continuam a ver-se como os polícias de um mundo que cada vez mais não lhes reconhece legitimidade para tal.

O mundo encantado dos comentadores

O desfasamento entre a realidade e o mundo em que vivem alguns comentadores não deixa de surpreender. Não aprenderam com a vitória de Trump sobre Hillary, talvez empolgados com o triunfo de Biden há quatro anos, que a dinâmica dos EUA varia de Estado para Estado e, dentro de cada Estado, das zonas rurais para as grandes cidades. Não aprenderam que sondagens não ganham eleições, que os seus desejos de privilegiados não são os daqueles que vivem fora da sua bolha de círculos restritos em Lisboa. Ignoraram por completo o estado de saúde de Joe Biden, defendendo teorias da conspiração que tanto abominam, até o debate com Trump ter colocado a nu a fragilidade que era visível mesmo durante a campanha de 2020 e se agravou notoriamente durante o mandato. Recordemos o que escrevia Ricardo Costa, da SIC/Expresso, sobre Biden, em 8 de fevereiro de 2023: “Um ano depois, o discurso de Biden virou e foi quase todo dedicado a temas internos dos EUA, capturando muitos pontos da agenda industrial e protecionista de Trump. Esteve em grande forma e transformou o Estado da União num quase anúncio de recandidatura (tem 80 anos…). Incrível”. A 28 de junho de 2024, o mesmo Ricardo Costa: “Debate trágico para Biden, como era relativamente fácil de prever. As hesitações, e o olhar perdido no ecrã dividido são impossíveis de reverter. O Partido democrata vai agora começar uma discussão que devia ter feito há dois anos”. Ou seja, Biden era incrível e estava pronto para uma recandidatura, mas, passados 16 meses, a discussão sobre ser ou não candidato devia ter-se iniciado 24 meses antes. Não deixa de ser notável. Sobre a saúde de Biden, vale a pena recordar as palavras de Viriato Soromenho-Marques, numa entrevista à RTP e num artigo no DN. Basicamente, perguntava quem é que tem mandado nos EUA, quando ficou claro que Biden estava manifestamente incapaz?

À direita, abrem-se garrafas de champanhe, no blogue Observador reza-se para agradecer a uma qualquer divindade, enquanto apertam o cilício. No comentariado que se apresenta como de esquerda, e alguns partidos que têm os seus emissários nos espaços das televisões, jornais e rádios, choram-se lágrimas de sangue, por terem assumido a ideologia dominante de que só há duas opções e ganhou a pior de duas péssimas. Vale a pena refletir neste ponto.

O genocídio progressista na Palestina

O Livre e alguns dirigentes do PS e do BE apressaram-se a manifestar apoio a Kamala Harris. O Livre fê-lo abertamente e até apelou ao voto em Harris através de uma ingerência ridícula, assinado nos Verdes Europeus, apelando à desistência de Jill Stein candidata dos Verdes nos EUA – sim, pasme-se, há mais de dois candidatos nas eleições presidenciais dos EUA – a favor de Kamala Harris. O que choca neste apelo é o ignorar por completo um genocídio em curso na Palestina, no qual a Administração dos EUA é cúmplice. Kamalla Harris é cúmplice. O que choca, ou devia chocar qualquer pessoa de esquerda, é tratar um genocídio, a que estamos a assistir em direto, como um fator menor, que possa ser descurado ou secundarizado. Daniel Oliveira, por exemplo, diz que quem, à esquerda, não votaria em Trump ou Harris é igual a quem não votaria em Lula ou Bolsonaro. Ficamos todos por saber qual era o genocídio em que Lula estava então a participar ativamente. O mesmo comentador escrevia no Expresso, a 22 de julho de 2024, que “Se excluirmos a política externa, Biden foi um bom presidente”. Só que o que nos deve interessar na política dos EUA é precisamente a sua política externa. Este desejo eurocêntrico de se imiscuir em tudo o que são assuntos e lutas internas dos povos de outros Estados está enraizado até naqueles que se afirmam de esquerda. Se temos o dever de estar solidários com as lutas dos trabalhadores, indígenas, negros, mulheres e imigrantes dos EUA? Claro que sim. Se devemos ser nós a indicar, seja a que povo for, quem os deve governar e a política que devem adotar, as suas formas de luta e organização? Não. É o triunfo, nestes setores que se identificam como de esquerda, da ideia que interessa à classe dominante que nos faz crer que só existe luta política através das urnas. E é trágico.

Outro dos argumentos que foi surgindo foi a velocidade a que decorre o genocídio na Palestina, já não só em Gaza mas também na Cisjordânia. Que, com Trump, este irá aumentar de intensidade e rapidez. Como se houvesse um genocídio mais humano, mais lento, com algum cuidado para com os milhares de palestinianos que continuam a morrer todos os dias sob o mandato de Biden-Harris. É absurdo e insultuoso para com a luta de décadas da resistência palestiniana e com as vítimas que tombam todos os dias às mãos de armas financiadas pelos EUA.

O circo

As eleições nos EUA funcionam como uma espécie de circo, mediático e não só, em que, se não há dinheiro, não há palhaços. Os media boicotam os outros candidatos e não é difícil perceber porquê, mas já lá vamos. Para além de Trump e Harris, concorreram a estas eleições Jill Stein, Cornel West, Chase Oliver e Claudia De La Cruz. O dinheiro comanda todo o processo de escolha de candidatos. Para poder aspirar a ser presidente dos EUA, é necessário angariar 5.000 dólares em 20 Estados diferentes. Para início do processo são necessários, assim, 100.000 dólares. Obviamente, os dois grandes partidos não têm este problema. São financiados, salvo algumas exceções, como é o caso de Musk que apoia apenas Trump, pelos mesmos bilionários que garantem, assim, que embora mude a presidência, tudo o resto se mantém constante. Entre estes estão os donos dos principais grupos de media. Nestas eleições, Harris garantiu mais de 1.000 milhões de dólares e Trump cerca de 400 milhões. Uma questão que é largamente omitida tem a ver com o financiamento de partidos que apresentam candidatos. A possibilidade de haver um terceiro partido para além dos dois habituais, pode vir daqui, uma vez que um partido que consiga entre 5 e 25% do voto popular nas eleições anteriores, garante financiamento que, atualmente, não tem, permitindo gastar escala no sistema eleitoral dos EUA. Que é, diga-se, completamente anacrónico, podendo o candidato mais votado perder as eleições. É a democracia a funcionar. O que fica claro é que, nos EUA, qualquer mudança profunda na sociedade sairá das bases oprimidas e não das cúpulas, sejam elas Democratas ou Republicanas.

A derrota e o mal menor

Julius Nyerere, lutador anticolonial e presidente da Tanzânia no século passado, terá afirmado qualquer coisa como “os Estados Unidos são um estado de partido único mas, com a sua extravagância habitual, têm dois”. E não mentiu. Ao longo dos últimos anos, particularmente desde o fim da Guerra Fria, o papel de alternância na presidência dos EUA tem resultado num agravamento das condições de vida e no desmoronar de um modelo de sociedade que alguns acreditaram, e os mais fiéis seguidores ainda acreditam, ser o fim da História. A vitória do neoliberalismo acabou por atomizar a sociedade dos EUA, com focos localizados de movimentos de massas e de trabalhadores que, aqui e ali, apresentam alguma resistência ao poder. No entanto, o sonho americano falhou. A desresponsabilização das funções sociais básicas de um Estado é trágica para qualquer país e os dois partidos não quiseram responder a este problema. Não é possível considerar funcional uma sociedade em que houve, durante este ano, 513 assassinatos em massa que resultaram na morte de mais de 600 pessoas e mais de 2.000 feridos. Não pode ser funcional uma sociedade que ensina os seus alunos a proteger-se no caso de uma pessoa entrar com uma arma de fogo numa escola. Fora do glamour do comentariado inspirado em Hollywood, os EUA são um conjunto de Estados falhados. A pobreza atinge mais de 11% da população e 2/3 das pessoas que manifestam insegurança alimentar têm rendimentos superiores aos 30.000 dólares anuais de referência, para uma família de quatro pessoas.

A aproximação de Harris a Trump em questões como o genocídio em Gaza, o protecionismo ou os passos atrás nas questões ambientais, não lhe rendeu votos por um motivo simples, que deve servir de aviso para estes lados: se as pessoas podem ter o original, não vão preferir uma réplica. Exemplos recentes mostram que os povos estão cada vez menos disponíveis para aguentarem os males menores que a social-democracia oferece. Vimos isso em França, com a derrota do centrão que, para surpresa de muito poucos, acabou por se aliar à extrema-direita para travar um primeiro-ministro de esquerda. Trump é, assim, o produto de uma sociedade disfuncional da sede do império que a União Europeia tenta, por todos os meios, fazer de conta que não está num processo, acelerado com o resultado destas eleições, de desagregação.

O império em decadência

O papel que está a ser deixado vago pelos EUA não vai ser ocupado pela União Europeia, que mais não é do que uma secção de interesses da potência dominante deste lado do Atlântico. O caso do Nordstream é bastante óbvio. O gasoduto que alimentava a Alemanha a partir da Rússia sempre teve oposição dos EUA e acabou, como sabemos, sabotado em 2022. Entre 2018 e 2021, os EUA exportavam 15 milhões de toneladas/ano de gás natural para a Europa. Em 2022 e 2023, esse número aumentou para 55 milhões de toneladas/ano. Já aqui, noutras páginas, se falou sobre a mudança que está a ocorrer no sistema internacional, um comboio que a UE já perdeu para os BRICS, com uma influência cada vez menor em África, onde foi mantendo as antigas colónias formais devidamente colonizadas economicamente. Nenhum império caiu sem estrondo. E este não será exceção. No intervalo da morte do mundo velho e o nascimento do mundo novo, estamos mesmo no tempo dos monstros.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *