Na luta pelo sufrágio feminino que marcou a Grã-Bretanha nas primeiras duas décadas do século XX, destacavam-se três figuras centrais: Emmeline Pankhurst, Christabel Pankhurst e Sylvia Pankhurst. Mãe e duas filhas que, a um tempo, dariam ao movimento sufragista o seu ímpeto e a sua irreversível dilaceração, espelhando, aí, a fractura social e política que, de modo paradigmático, caracterizava o contexto britânico envolvente.
“As mulheres ganharam o voto; não, corrijamo-nos, algumas mulheres receberam o voto”, escrevia Sylvia Pankhurst em 1918, no jornal “The Workers’ Dreadnought”, após a formalização do sufrágio feminino a 6 de Fevereiro daquele ano. Esta emblemática afirmação era reflexo directo do inultrapassável ponto de contenção entre um feminismo liberal, incontornavelmente burguês e preconizado pela sua mãe e irmã mais velha, Emmeline e Christabel, e a luta pelos direitos das mulheres integrada na impreterível luta de classes, como defendido por Sylvia. É no particular antagonismo entre as duas irmãs, uma tory (da direita conservadora) e uma comunista, que se espelharia, à época, um inevitável choque entre feminismo e luta de classes. É também aí que encontramos uma discussão de relevância plena ainda nos dias de hoje.
As Pankhursts, a WSPU e as mulheres trabalhadoras
A família Pankhurst veio a assumir um irredutível papel na luta pelo sufrágio feminino e, extravasando o contexto que lhe deu origem, afigura-se indispensável a qualquer análise sobre o sufrágio e a emancipação feminina no norte global.
Mãe, Emmeline, e filha mais velha, Christabel, fundavam a União Política e Social das Mulheres (WSPU – Women’s Social and Political Union) em 1903, envoltas no extraordinário dinamismo das lutas laborais em todos os sectores-chave da indústria britânica à época, e como consequência da continuada falta de resposta do Partido Trabalhista Independente (Independent Labour Party – ILP) à questão do sufrágio feminino, assim como da resposta conservadora que não servia, naturalmente, os interesses de emancipação social e política das mulheres. Sylvia juntar-se-ia à WSPU em 1906 seguindo, porém, uma resoluta linha ideológica que progressivamente a afastaria da WSPU, da mãe e, sobretudo, da irmã.
A WSPU vinha a orientar decididamente a organização das mulheres em torno da luta pelo direito ao voto, tendo mais de 3000 secções, um jornal (“Votes for Women”) com mais de 40 mil cópias semanais, e vindo a organizar acções de massas das quais se viria a destacar uma grande manifestação com a participação de quase meio milhão de pessoas no Hyde Park, em 1908.
Embora inequivocamente concebida como braço do movimento operário britânico, a WSPU distanciar-se-ia progressivamente deste propósito primeiro, acabando por cortar todos os laços que a ligavam à organização das mulheres da classe trabalhadora e à classe trabalhadora como um todo.
Vindo, grosso modo do seu financiamento, directamente da burguesia, cedo essa influência se faria notar. Logo em 1905, Christabel, havendo passado a ser a figura dominante na organização da WSPU – que funcionava agora liberta de qualquer vestígio de traço democrático –, determinava que um movimento de mulheres trabalhadoras não teria utilidade para o movimento sufragista já que as mulheres da classe trabalhadora seriam as mais fracas do seu sexo: “Será certamente um erro usar as mais fracas na luta! Nós queremos as mulheres mais fortes e inteligentes!” (citada em “The Suffragette Movement”, em 1978).
Christabel e o compromisso com a Burguesia
Face à continuada recusa do Governo em garantir o direito ao voto para as mulheres, as acção de rua convocadas pela WSPU começariam, a partir de 1907, a comportar dimensões progressivamente mais violentas, do estilhaço de janelas ao confronto físico com a polícia. Seriam, a partir deste ponto, seguidas de prisões em grande escala.
No contexto de duríssimas condições de prisão e reconhecendo, simultaneamente, o seu potencial publicitário num cenário, até aí, de aberta ridicularização da causa sufragista na imprensa, a direcção da WSPU aponta, em Agosto de 1909, a greve de fome como modo de reivindicação do estatuto de presas políticas e como única forma de resistência às condições a que estavam sujeitas na prisão.
O Governo cedo reage a estas greves de fome com a imposição da prática de alimentação forçada. Numa estratégia que viria a ficar conhecida como “gato e o rato”, este generalizado e institucionalizado método de tortura era seguido da libertação da prisioneira aquando da suficiente deterioração da sua saúde, voltando a prendê-la mal se mostrasse fisicamente recuperada. O Governo esperava evitar, deste modo, o surgimento de mártires e enfraquecer o movimento de mulheres.
Centenas de mulheres são submetidas à prática, incluindo Sylvia que, segundo a documentação oficial, terá sido a prisioneira mais vezes sujeita a alimentação forçada, com incontornáveis e permanentes consequências para a sua saúde. Dos relatos deixados pelas activistas presas, percebemos a forma vil como é aplicada a prática, repetindo-se diariamente, de manhã e de noite.
Não surpreendentemente, são as mulheres trabalhadoras as sujeitas à mais dura repressão, mais violentas condições de cárcere e mais indigno tratamento como consequência da sua luta no contexto da WSPU. Enquanto isso, o sentimento anti-operariado que se havia instalado na WSPU sob liderança de Emmeline mas sobretudo de Christabel, disseminava a ideia de que as sufragistas tinham mais direito a revolta do que os trabalhadores. Fazia-se uma distinção implícita entre os dois, sufragistas e trabalhadores, sublinhando que as sufragistas poderiam, pois, alcançar avanços na sua condição social e política sem o recurso a formas de luta organizada nos locais de trabalho.
O compromisso de Christabel com o conservadorismo e com a direita é, com a morte do rei em 1910, tornado progressivamente mais explícito. Escreve extensamente e posiciona-se publicamente numa mórbida e absoluta devoção ao trono que viria conhecer o seu expoente mais simbólico na suspensão de toda a actividade da WSPU durante o período de luto nacional.
A 21 de Novembro de 1911, face ao fracasso de todas as precedentes campanhas pelo voto, Christabel e Emmeline assumem, do seu exílio em Paris, a necessidade de escalada nas tácticas de luta pelo sufrágio e organizam uma quebra massificada de janelas na zona de West End de Londres. Em Janeiro de 1913, iniciam uma extensa campanha de fogo posto e, em Junho, morre a sufragista Emily Wilding Davison ao precipitar-se contra o cavalo do rei durante o Derby inglês. Estas acções mais extremadas, ao jeito de golpe publicitário, roubavam o lugar das reuniões públicas de massas que haviam pautado o início da actividade da WSPU e que pautavam, ainda, o trabalho de Sylvia junto das mulheres da classe trabalhadora, à revelia da orientação geral da WSPU – que se mantinha propositadamente alheada dos grandes bloqueios e greves de massas da primeira metade da década de 1910.
A declaração de guerra em 1914 abre terreno fértil para o chauvinismo imperialista da WSPU que, de imediato, se lança numa campanha nacional de recrutamento de mulheres para a indústria de armamento, transformando prontamente o seu jornal “Suffragette” em “Britannia” sob o abjecto mote “Pelo Rei, Pelo País, Pela Liberdade”. Em 1915 uma nova campanha da WSPU, direccionada à indústria britânica, empenha-se na impetuosa promoção da denúncia de “ideias bolcheviques”, funcionando activamente como informadoras e fura-greves. Estas denúncias, acompanhadas de relatórios de actividade, eram enviadas directamente ao Primeiro Ministro.
Sylvia e o compromisso com a emancipação da mulher trabalhadora
A orientação burguesa da WSPU insistia numa lógica de inexorável antagonismo entre sexos que determinava um extremo pudor em participar, não só de outras lutas para lá da reivindicação do direito ao voto, como do próprio tecido político do país, abstendo-se em absoluto de qualquer ligação partidária (a “partidos dos homens” como lhes chamavam). Assumindo o homem como inimigo último, o movimento sufragista sob orientação de Christabel e Emmeline mostrava-se incapaz de perceber a estrutural raiz das desigualdades e opressão das mulheres.
Um movimento de mulheres alheio às exigências da luta de classes e ao necessário forjar de visceral ligação ao movimento dos trabalhadores é um movimento encerrado em si mesmo e votado a uma concepção burguesa de igualdade formal que o torna profundamente ineficaz. Sylvia sabia-o. Agitando e organizando as mulheres da classe trabalhadora, traindo a sua própria classe e organizando-se junto delas, Sylvia é decisiva na concretização de diversas marchas e greves com adesão de massas, como é o exemplo da greve na fábrica de alimentos em Bermondsey na qual as mulheres, acompanhando a greve dos estivadores de 1911, conseguem a adesão de 15 mil trabalhadores de 19 outras fábricas e oficinas, culminando num grandioso comício em Southwark Park que forçaria as entidades patronais de 15 destas fábricas a aumentar salários. O crescente e significativo envolvimento das mulheres trabalhadoras nas greves da indústria mostrava um caminho claro: a necessária união entre as reivindicações laborais e a reivindicação do direito ao voto, somente assim se garantiria um sufrágio verdadeiramente universal e uma real emancipação.
Sylvia deixaria manifesto, nas suas memórias, “Eu queria agitar as mulheres das massas submergidas para serem, não apenas pessoas mais afortunadas, mas lutadoras por sua própria conta […] revoltando-se contra as condições hediondas [em que vivem e trabalham], e exigindo para si mesmas e para as suas famílias uma participação plena nos benefícios da civilização e do progresso”. A contribuição de Sylvia para o movimento operário, em particular aquele borbulhando na zona de East End de Londres, afigurava-se de incontornável impacto e viria a determinar, desde cedo, a complexa e conturbada relação de Sylvia com a WSPU e, em particular, com Christabel.
Em 1907, numa experiência pivotal que precipita o início do seu questionar das tácticas da WSPU – que, por esta altura, extremavam a violência nas ruas e as greves de fome nas prisões –, visita uma série de cidades do norte de Inglaterra registando, por escrito e através da pintura, a vida doméstica e as condições laborais da classe trabalhadora, em particular das mulheres, reportando a brutal exploração na indústria e na agricultura e as condições desumanas também nas casas, onde faltava absolutamente tudo, a começar pelo saneamento básico.
Seria necessário, a seu ver, apelar às massas numa luta comum por melhores condições de vida em detrimento das formas de militância de cariz mais individualista, vindo a rejeitar abertamente as violentas tácticas de acção directa exigidas por Christabel. Sylvia posiciona-se em contínuo desacordo com tais tácticas, acreditando que o foco do movimento deveria estar, antes, com as massas: “o movimento exigia, não militância mais séria de um grupo restrito, mas um apelo maior às grandes massas para que estas se juntassem à luta” (“The Suffragettes”, 1911). É sob este pressuposto que Sylvia se vinha obstinadamente empenhando na organização das trabalhadoras do East End, formando a East London Federation of the WSPU enquanto sector da WSPU, assumindo a luta pelo sufrágio como parte de um mais vasto processo revolucionário.
A sua, há muito eminente, expulsão da WSPU vê-se determinada, a Janeiro de 1914, pela intervenção de Sylvia numa grande luta de massas em Albert Hall, em solidariedade com os trabalhadores de Dublin que se encontravam em greve.
Que não nos assombre a menor dúvida de que, quando Christabel exige, do conforto burguês do seu exílio parisiense, a imediata expulsão da East London Federation e de uma Sylvia visivelmente desgastada pelo duro e constante trabalho de organização revolucionária e pelas consequências que as prisões e greves de fome haviam tido na sua saúde, está a exigir a expulsão de todas as mulheres da classe trabalhadora do movimento sufragista. Emmeline terá tido uma posição ligeiramente mais moderada mas partia do mesmo pressuposto que Christabel.
Poucos meses passados e a orientação profundamente reaccionária da WSPU tornar-se-ia evidente no apoio à Guerra. Ironia última, esta de afinal se estar imediatamente preparada para lutar ao lado do “homem-inimigo” pela demagogia do esforço de guerra, lembrando que este homem ao lado de quem se luta é o homem burguês que, servindo os seus inalienáveis interesses de classe, empurra os homens e mulheres do proletariado para as fileiras da guerra e das fábricas, respectivamente. O pudor era afinal, e naturalmente, estendido apenas a homens de uma classe que não a sua.
Após a expulsão, East London Federation transforma-se em East London Federation of Suffragettes (ELFS) e, durante a Guerra, organiza sob orientação de Sylvia, importantes acções anti-imperialistas e pacifistas de apoio aos trabalhadores do leste de Londres, reconhecendo de modo muito claro sobre que classe recaia o preço a pagar pela guerra. Entre estas ações destaca-se a cantina comunitária nas instalações da ELFS, fornecendo alimentação a preço de custo e assegurando leite e jantar gratuitos a cerca de 100 mães lactantes todas as noites. A Federação assegurou, ainda, a criação e funcionamento de clínicas dedicadas à saúde das mulheres, estimando-se que durante o ano de 1915 cerca de mil mães e bebés tenham, aí, recebido consultas gratuitas. Cria, igualmente, berçários que serviram cerca de quarenta crianças e uma fábrica de brinquedos que empregou 59 mulheres.
Em 1916, a East London Federation of Suffragettes transforma-se, num primeiro momento em Worker’s Suffrage Federation, e, posteriormente, recebendo o grande impacto da Revolução Russa, em Workers’ Socialist Federation (WSF), manifestando, no seu programa, o inequívoco objectivo de “assegurar o Sufrágio Humano: um voto por cada mulher e homem maior de idade” (“Women’s Dreadnought”, 18 de Março de 1916).
O voto
O sufrágio feminino consagrava-se, na lei britânica, a 21 de Novembro de 1918; não obstante, o direito universal ao voto encontrava-se ainda distante – somente dali a 10 anos se asseguraria um sufrágio verdadeiramente universal.
Sob orientação de Christabel e Emmeline, as sufragistas haviam-se focado numa mera igualdade formal e, como consequência, o direito ao voto concebia-se como fim em si mesmo, liberto de qualquer compromisso com a transformação do sistema capitalista e das instituições burguesas que o sustentavam. Consagrava-se, em 1918, um direito exclusivo das mulheres com mais de 30 anos de idade e detentoras de propriedade; pela mesma ordem de razões, respondendo aos mesmos interesses de classe, também muitos homens, em particular homens racializados, continuavam afastados do voto. A universalidade do sufrágio era um mito que importava não alcançar, sobretudo perante a ameaça de uma possante Revolução Russa que a havia assumido desde logo como prioridade.
Christabel, transformando o que havia restado da WSPU no The Women’s Party, candidatava-se às eleições parlamentares de Dezembro de 1918 assumindo uma espécie de cruzada contra o “bolcheviquismo” que lhe valeria o apoio do governo à sua candidatura pese embora ter vindo a ser derrotada pelo candidato trabalhista nestas eleições. Após esta experiência, mudar-se-ia para os EUA onde dedicaria o resto da sua vida à Igreja Adventista do Sétimo Dia, e onde viria a falecer em 1958.
Sylvia, pelo contrário, recebe de braços abertos todo o fulgor revolucionário que se instaura no pós-Guerra sob a grande influência da Revolução Russa e posiciona-se, desde o primeiro momento, contra a lei de 1918. Apelidando-a de “franchise chique”, percebe-a pelo que é: moeda de troca pelo silêncio das mulheres, não fosse enraizar-se em demasia, nas suas mãos e nas suas mentes, a ideia de que uma revolução socialista seria possível em solo britânico. O Governo burguês temia, pois, não só a organização das mulheres trabalhadoras (em particular, as operárias das fábricas de munições, agora militantes em grande número), mas igualmente o teor do seu voto.
É assim que, em 1919, Sylvia impulsiona a Workers’ Socialist Federation a assumir-se como Partido Comunista e, no ano seguinte, a agregar-se a outros pequenos grupos formando o Partido Comunista (Secção Britânica da Terceira Internacional) – PC (BSTI) – e, em seguida, o Partido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB), confirmando-se como um dos históricos membros fundadores do CPGB. Troca, nesta época, correspondência com Lenine, em particular sobre a questão da afiliação de um Partido Comunista britânico ao Partido Trabalhista, expressando descrença nas políticas reformistas deste e na inevitável natureza burguesa do Parlamento. Lenine reconhece a justeza das preocupações da camarada sublinhando, porém, a importância da participação dos comunistas em todas as lutas da classe trabalhadora, ganhando a sua confiança e guiando o movimento em direção ao socialismo.
A acção política de Sylvia durante as décadas seguintes viu-se inextrincável da luta anti-fascista e anti-imperialista, apoiando os republicanos em Espanha, ajudando refugiados judeus da Alemanha e lutando contra a ocupação colonialista da Etiópia por Mussolini. Estabelece-se, na Etiópia, fundando “Ethiopia News”, em 1936, e aí falece em 1960.
Feminismo e a luta de classes
A intensa agitação que no seio da classe trabalhadora se fazia sentir, na Grã-Bretanha do final do século XIX e início de XX, afirma-se na dinamização do movimento operário e sindicalista britânicos em torno de uma longa sucessão de intensas greves em todos os sectores da indústria. Estas greves envolveram, desde o primeiro momento, as mulheres trabalhadoras, antes mesmo da organização das mulheres da classe média e da burguesia em torno da luta pelo direito ao voto. A aberta hostilidade que a burguesia feminina envolvida no movimento sufragista haveria de demonstrar face às causas da classe trabalhadora não mais seria que inequívoco traço da sua natureza reaccionária.
O posicionamento das sufragistas é determinado pelo contexto de classe em que se desenvolve – pelas suas condições materiais, pela posição que ocupam no sistema de produção e reprodução, pelo posicionamento político (o seu e o dos seus maridos, também ele incontornavelmente de classe). Estando unicamente interessadas na obtenção de igualdade formal, as sufragistas da classe média e da burguesia ficariam, pois, plenamente satisfeitas com um direito ao voto altamente condicionado – exclusivo à sua própria classe.
Olhar a história dos movimentos feministas por todo o mundo é sermos obrigados a reconhecer o papel absolutamente central da classe. Perceberemos aí, invariavelmente, a riqueza do legado das mulheres comunistas na luta pelo sufrágio universal (com o exemplo de dirigentes comunistas britânicas como Sylvia Pankhurst, Melvina Walker, Nora Smythe, Nellie Cressall, Julia Scurr, Minnie Lansbury, Jennie Mackay, Nellie e Rose Cohen, Daisy Lansbury, ou May O’Callaghan), profundamente comprometidas com a transformação revolucionária da sociedade.
Os interesses de classe e consequentes estratégias de acção personificadas por Christabel e Sylvia mostraram-se tão inexoravelmente irreconciliáveis como continuam a ser, hoje, as antagónicas matrizes ideológicas que os sustentam. Os interesses das mulheres das classes dominantes serão sempre contrários aos interesses das mulheres trabalhadoras: da opressão e exploração destas depende a subsistência última daquelas. Assim se solidificou, hoje, um feminismo neo-liberal comprometido com a manutenção do status quo que continuamente beneficiará as mulheres das classes dominantes e as ocupará com a frívola e performativa luta por pontuais alterações às suas situações particulares.
Defender a emancipação das mulheres a partir de um posicionamento marxista, pensando a sociedade de classes como raiz de todas as formas de opressão, é infinitamente diferente de defendê-la partindo do pressuposto neo-liberal de que a opressão das mulheres tem base na natureza dos homens. Aceitarmos esta última – e o seu carácter não-dialéctico e a-histórico – pressupõe aceitarmos como natural e imutável, não só a opressão das mulheres em função do seu sexo, mas igualmente o capitalismo (ainda que este se veja, neste contexto, raras vezes chamado à discussão).
Não tenhamos dúvidas de que é a sociedade de classes, a propriedade privada e o Estado que, edificando a concepção burguesa de família e determinando a divisão sexual do trabalho e a exploração reprodutiva da mulher, estabelecem a opressão específica da mulher em função do seu sexo. A abolição desta opressão dependerá, logicamente, da abolição da sociedade de classes; e, a abolição da sociedade de classes, de uma revolução socialista. Somente esta última será capaz de criar as condições para a emancipação real da mulher e a enfim igualdade entre mulheres e homens.
A classe trabalhadora deve organizar-se combatendo, não só todas as formas de opressão e exploração mas, igualmente, todas as tentativas de no seu seio se criarem divisões. A impreterível luta contra a opressão e discriminação das mulheres deve ser travada a par da inequívoca rejeição do feminismo burguês e pequeno-burguês que coloca como central um conflito último entre mulheres e homens, vítimas e infractores, fragilizando a nossa capacidade organizativa. Devemos, pois, reconhecer de que lado estamos quando falamos hoje de feminismo e emancipação das mulheres.
Defendemos os direitos das mulheres apoiando-nos numa bafienta direita que nos quer acorrentadas à subserviência sob ilusão de defender os nossos espaços exclusivos em função do sexo? Defendemos os direitos das CEOs que lucram com a exploração da nossa força de trabalho? Lutamos ao lado de quem nos explora porque partilhamos características sexuais? Defendemos os direitos das mulheres trabalhadoras a partir de posicionamentos individualizados e identitários que nos separam umas das outras e dos nossos companheiros de classe?
Ou lutamos ao lado de todos os trabalhadores por condições de trabalho dignas, por salário igual para trabalho igual, pela salvaguarda dos nossos direitos sexuais e reprodutivos, pela efectivação do direito à maternidade e paternidade, pela contratação colectiva, por horários regulados, pelo acesso de todos, em condições de igualdade, à saúde, à educação, à habitação, à cultura?
Olhar a cisão no seio do movimento sufragista britânico deve consolidar a nossa certeza de que a crença num inultrapassável antagonismo de sexos, bem viva ainda hoje, reduz a luta a uma ineficácia e estagnação reacionárias. A luta é dos trabalhadores, mulheres e homens apontando para o horizonte da emancipação e de um futuro mais justo.