A prioridade dos cinco

Nacional

Momento captado pela câmara de videovigilância da fuga dos reclusos / aberto buraco no arame farpado para esconder a escada que possibilitou a fuga.

Breve introdução temática

A 31 de dezembro de 2023 estavam recluídas, em Portugal, 12 193 pessoas: 11 287 homens e 906 mulheres. Aqui incluem-se 347 pessoas inimputáveis a cumprir medidas de segurança – das quais 166 internadas em clínicas psiquiátricas prisionais e 181 em clínicas e hospitais psiquiátricos não prisionais. Dos 49 estabelecimentos prisionais portugueses, 24 excediam a lotação, à data. Dos 22 considerados de elevado grau de complexidade de gestão, três tinham ultrapassado a sua lotação: Caxias, com 24 reclusos acima da capacidade; Vale do Sousa, com 3 e Porto (Custóias), com uma diferença de 197. Dos 27 considerados de grau médio de complexidade, apenas seis se encontravam abaixo ou no limite da capacidade: Viseu, Vila Real, Torres Novas, PJ Porto, Évora e Covilhã.

A 31 de dezembro de 2024 estavam recluídas um total de 12 207 pessoas – 11 320 homens e 887 mulheres – e a 1 de fevereiro de 2025 o número fixava-se num total de 12 195 reclusos – 11 315 homens e 880 mulheres – o que não representa uma variação significativa entre o final de 2023 e o início deste ano. Embora ainda não estejam disponíveis os dados estatísticos globais de 2024, poderemos depreender que, salvo também pequenas variações na distribuição de reclusos pelos 49 estabelecimentos prisionais, a situação não andará muito longe do mapa do final de 2023.

Mas o que é importante: a fuga e a escada

Após um último trimestre, em 2024, marcado pelo acompanhamento atento à fuga de cinco reclusos de Vale dos Judeus – com direito a aberturas de telejornais e coberturas mais minuciosas por parte de órgãos de comunicação social autoproclamados especialistas do crime -, a atenção focou-se no sistema prisional e nas suas insuficiências.

O engenho daqueles cinco fugitivos, que bem podiam protagonizar um livro de aventuras cuja ilustração da capa seria, obrigatoriamente, uma simplória escada de madeira, deu lugar a um pânico social que já faltava para apimentar as discussões sobre segurança e vigilância nos cafés do país. Embora, ao longo dos últimos 16 anos, se tenham evadido 160 reclusos do sistema prisional português – 98 dos quais de dentro da prisão -, o certo é que já não se registava uma fuga coletiva tão imponente há muito tempo. Em 2017, apenas três reclusos fugiram do EP de Caxias, depois de, 10 anos antes, seis reclusos terem conseguido escapar do EP de Guimarães. Mas como 2007 já lá vai, a memória acompanha. Nem a fuga em julho de 1986, de seis reclusos da então Colónia Penal de Pinheiro da Cruz, que resultou na morte de três guardas prisionais e no ferimento de mais dois, parece acalmar os ânimos esquentados por aquela imagem perturbadora da escada! A não ser que recuássemos, talvez, à maior fuga de uma prisão portuguesa desde o 25 de Abril: justamente também de Vale dos Judeus, em 1978, quando depois de um grupo escavar um túnel por onde se evadiu, centenas de reclusos aproveitaram a “boleia”, tendo ficado o resultado final a 124 reclusos – prisão, 0.

Novela das cinco com intervalos de lucidez (timming relativo)

Mas como desta vez é que foi grave, soaram as cornetas do reino, resolveu-se a primeira limpeza de imagem com a demissão do então Diretor-Geral da DGRSP e aproveitou-se para lançar uma espécie de campanha em torno das prisões. Podiam ter-se aproveitado, quem sabe, os vários processos ganhos ao Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em casos de más condições prisionais – noticiados, aliás, entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, num total de seis processos que somaram perto de meio milhão de euros só em indemnizações – fora custas judiciais. Desde faltas de condições de higiene, com celas sujas, com bolor, infestações de insetos e roedores; temperaturas inadequadas e falta de ar fresco; falta de qualidade e quantidade da alimentação; quantidade insuficiente de exercício físico ao ar livre; falta de recursos internos para apoio aos reclusos; sobrelotação em celas ou falta de assistência médica adequada – uma lista pouco honrosa no que diz respeito à dignidade humana e à saúde pública. Mas como este governo só tomou posse em abril de 2024, já não foi a tempo de discutir sistema prisional. Paciência!

Eis que chegou setembro e com ele a fuga do século: e finalmente este governo pode falar sobre o sistema prisional e as suas necessidades! Algures pelo meio da história de amor de Fábio Cigano e da esposa, que não aguentou esperar pela viagem a Marrocos, soaram as campainhas sobre a falta de guardas prisionais e condições de segurança. Esperava-se que, talvez, ao falar destas condições se falasse também das condições de salubridade nas prisões ou da falta de outros recursos humanos na DGRSP; mas nem por isso. À frente.

Entretanto pausa para a história de Fernando Ferreira, o simpático vizinho que se mudou para uma aldeia de Trás-os-Montes e que quase foi capturado antes por ação de um senhor que o reconheceu no magusto na casa do povo, só que ninguém – nem a esposa! – acreditou nele e riram-se quando o ouviram dizer que achava que Fernando parecia ser…Fernando. Uma pena, já que se podia ter poupado uma operação que custou, com certeza, bastante à PJ. Pelo menos, desta vez, foi tudo em território nacional.

Enquanto isto, as obras no parque prisional continuam atrasadas, mantém-se a falta de guardas prisionais e começa a tornar-se mais visível o problema nas carreiras dos técnicos profissionais da DGRSP. No âmbito da DGRSP exercem funções Técnicos Profissionais de Reinserção Social (que trabalham em Centros Educativos e nas equipas de Vigilância Eletrónica); Técnicos Superiores de Reinseração Social (integrados nas Equipas de Reinseração Social – Equipas Penais) e Técnicos Superiores de Reeducação (que trabalham nos estabelecimentos prisionais). Ou seja, integrados em diferentes unidades orgânicas.

Mas só depois da captura do georgiano Shergili Farjiani em Itália – de regresso às grandes colaborações internacionais – e para não envergonhar os participantes portugueses, capturados primeiro entre o grupo – e da abertura do concurso para 225 guardas prisionais, é que, neste primeiro trimestre, o Governo inicia o processo de negociação coletiva com as organizações representativas daqueles trabalhadores com vista à criação de uma carreira especial única e Técnico de Reinserção da DGRSP e respetiva regulamentação de forma a garantir a valorização das carreiras, a sua progressão e regime salarial.

Entretanto, más notícias sobre o concurso para Guardas Prisionais: entre os quase 300 candidatos, concluídas as provas físicas, ficaram aptos apenas 99 para as 225 vagas abertas. No entanto, num golpe de rapidez que deixaria os cinco homens de Vale de Judeus deveras impressionados, a Secretária do Estado Adjunta e da Justiça adiantou informação à Lusa, no início deste ano, que pretende abrir novo concurso o mais brevemente possível e que, para que não volte a acontecer o fracasso do concurso atual, será mesmo alterada a legislação de acesso à carreira de Guarda Prisional – já que se demonstra antiquada e um entrave a uma maior eficiência no recrutamento -, o que incluirá, ainda, uma revisão nas normas do Estatuto dos Guardas Prisionais para modernizar o processo e dar-lhe mais celeridade. Fossem todas as leis laborais revistas tão rápido para serem mais favoráveis à valorização das carreiras!

Auditoria – o momento da verdade

Mas, antes, recuemos a dezembro de 2024, altura em que é realizada uma auditoria, a pedido da Ministra da Justiça, às condições de segurança e vigilância das 49 prisões portuguesas – um levantamento importante, apenas conquistado com a fuga daqueles cinco homens em setembro de 2024! Diz o relatório realizado pela Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça que existem várias questões que merecem resolução no sistema prisional português. A saber, entre outras:

i) Torres de vigilância que não funcionam;

ii) Falta de uniformização de configuração das câmaras de vigilância;

iii) Falta de sistemas que impeçam o arremesso de objetos;

iv) Necessidade de avaliar a lotação das prisões;

v) Desadequação dos locais para visitas;

vi) Carrinhas celulares e de serviço que acusam os anos de uso (consultar notícias sobre celulares avariadas que chegaram a adiar julgamentos);

vii) Escassez de guardas prisionais ao serviço – menção a acidentes em serviço, doenças prolongadas, baixas médicas, faixa etária avançada e ausência de formação destes profissionais em temas específicos;

viii) Dificuldades na distribuição de reclusos nas cadeias e pelas alas;

ix) Permanência de preventivos em estabelecimentos prisionais concebidos para condenados;

x) Subocupação do Regime Aberto Para o Interior (RAI), não se assegurando a total ocupação dos tempos de quem está nesse regime;

xi) Pouca articulação na informação entre estabelecimentos prisionais e entre a DGRSP e as prisões;

xii) Dificuldades na transferência de reclusos, com grande concentração de saídas nos mesmos dias.

A Ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e a Secretária de Estado Adjunta e da Justiça, Maria Clara Figueiredo, decidiram, em função deste relatório, pedir à DGRSP que:

a) Proceda à classificação, por grau de prioridade, das falhas cuja reparação se revela mais urgente e/ou necessária;

b) Calendarize as medidas destinadas a suprir as falhas;

c) Apresente um relatório de execução até 31 de março de 2025 e outro até 30 de junho de 2025;

E ordenam nova inspeção, a realizar pela IGSJ, no último trimestre de 2025, com entrega do relatório final até 31 de dezembro de 2025.

Mais veloz do que a fuga dos cinco: a prioridade para 2025

Para a Ministra da Justiça, todo este cenário confirmou o estado de desinvestimento no sistema prisional ao longo dos anos. Não está errada. Adiantou, ainda, que já foram concretizadas medidas importantes para começar a contrariar este rumo, como a aquisição de novas viaturas, de equipamentos de vigilância eletrónica e a contratação de 225 Guardas Prisionais em curso. Que afinal, à partida, será apenas de 99. Mas já está criado o grupo de trabalho responsável pelas alterações legislativas capazes de desbloquear uma contratação pública – uma pena que a Sra. Ministra tenha perdido a oportunidade de dizer que esta será a contratação pública mais à esquerda de sempre, para fazer inveja a António Costa e o seu já esquecido orçamento.

Mas não é só com esta decisão que o Ministério da Justiça nos surpreende – em rapidez e em clarividência. Perante os resultados da auditoria, que em grande parte já escrutinámos, e muito embora uma das decisões tenha sido recomendar à DGRSP que classificasse o grau de prioridade das falhas no sistema prisional, a Sra. Ministra não conseguiu aguentar até março e avançou ela mesma, no programa “Grande Entrevista” da nossa estação pública de televisão, com a prioridade das prioridades: lançar um concurso público, ainda este ano, para implementar a inibição do sinal de telemóveis nas prisões portuguesas! O investimento deverá rondar os 10 milhões de euros e resolverá um total de zero falhas apontadas no relatório da auditoria que a própria Sra. Ministra exigiu.

No entanto, segundo a própria, os telemóveis usados nas prisões servem para preparar fugas e praticar crimes, pelo que, pelos vistos, fica resolvida, de uma vez por todas, o problema de falta de investimento no sistema prisional e, ainda, o crime em Portugal. Sem sinal de telemóveis, acabou!

Notas sobre a tecnologia nas prisões: para além de vigiar e punir

Diz o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, no seu Artigo 132º (Comunicações telefónicas), que:

1-      O recluso pode efetuar chamadas telefónicas pessoais para o exterior, com a duração de, pelo menos, 15 minutos por dia, bem como para o seu advogado ou solicitador e para os números de interesse público, com a mesma duração.

2-      Os contactos telefónicos são exclusivamente efetuados através dos equipamentos telefónicos instalados para o efeito nos espaços de alojamento ou nas áreas comuns dos estabelecimentos prisionais, dotados de sistemas de bloqueamento eletrónico que permitam o acesso dos reclusos apenas aos contactos autorizados, sendo vedada a utilização, a posse ou a mera detenção de quaisquer outros aparelhos telefónicos, designadamente telemóveis.

Os reclusos são obrigados a registar os números de telefone para os que efetuarão chamadas, bem como a identidade e relação com os respetivos destinatários, sendo que estão impedidos de receber chamadas telefónicas de quem quer que seja. Sendo proibida a utilização de telemóveis, pelos reclusos, dentro dos estabelecimentos prisionais, há muito tempo que, ao invés de se conseguir gerir a sua utilização efetiva, a consequência tem sido, antes, o contrabando destes objetos – que atingem hoje, dentro das prisões, o triplo do seu valor comercial. Desengane-se quem acredita que apenas os familiares ou outras visitas os levam para dentro de muros.

De qualquer forma, talvez fosse altura de aproveitar a boa vontade deste Governo em se predispor a rever legislação e regulamentos para abordar o elefante na sala: que vantagens e que desvantagens em proibir a utilização de telemóveis nas prisões? Enquanto alguns países da Europa, como a Noruega ou a Dinamarca, avançam para a conceção e concretização de prisões mais humanizadas, que permitam uma aproximação maior entre o funcionamento das rotinas intramuros, tanto quanto possível, e as rotinas em meio livre – com projetos, inclusivamente, de utilização de tablets, com acesso à internet, por cada recluso, como numa prisão em Berlim, na Alemanha – Portugal prepara-se para investir 10 milhões para inibir o sinal de uma tecnologia que poderia ser usada a favor da reinserção das pessoas recluídas na sociedade, quando cumpridas as suas penas.

Por outro lado, a proibição da utilização de telemóvel tende a marginalizar ainda mais quem vive marginalizado, desaproveitando uma janela que poderia servir para manter laços familiares e sociais, procurar emprego, habitação, ocupar o tempo livre, complementar a formação, fomentar a responsabilização e a autonomia e adquirir competências que permitam optar por um modo de vida socialmente responsável, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre – aliás, como previsto no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

A tecnologia permite que, numa lógica de legalidade, a utilização de telemóveis, com acesso a internet, possa ser condicionada e monitorizada dentro dos estabelecimentos prisionais, evitando, assim, contactos que se entendam desfavoráveis à reabilitação dos seus utilizadores – como sendo a prossecução da prática de crimes ou de congeminações que ponham em causa a segurança (sua e de outros) dentro das prisões. Ora, se a tecnologia é utilizada como aliada para garantir vigilância, não se compreende a apreensão – e o tremendo erro! – em não a utilizar para o processo de reabilitação para o qual a prisão serve. Aos céticos de serviço, bastará ler sobre os fins das penas, ou tão somente o código anteriormente referido, para compreender que, ao contrário do que os defensores do fim dos tempos gostam de fazer crer, as prisões não servem para punir.

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